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“Desocupados”, “idiotas”: como a mídia noticiou a Semana de Arte Moderna em 1922

Vaias e ataques aos modernistas foram estimulados pelos jornais; estudo mostra que único a celebrar o movimento foi o extinto Correio Paulistano

Projeção comemorativa aos 100 anos da Semana no Palácio dos Bandeirantes. Foto: governo de São Paulo
Cynara Menezes
23 de fevereiro de 2022, 18h33

A velha mídia celebra em reportagens e cadernos especiais o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922 como um marco na cultura brasileira, um divisor de águas como de fato foi. Mas e no ano em que o evento aconteceu, como os jornais receberam aquela revolução nas artes? Com a mesma pompa e circunstância de agora? Que nada. A mídia comercial da época tratou a Semana mais ou menos como trata hoje qualquer transformação progressista na política: com desprezo, preconceito e muito, muito ódio.

A Folha da Noite, embrião da Folha de S.Paulo, era a mais feroz: “Não é só um problema de estética, mas deve ser estudado como fenômeno de patologia mental”, disparava um colunista, que via nos modernistas “um estado de espírito mórbido” e “desequilíbrio”

Uma pesquisa feita pela jornalista Ângela Thalassa para sua tese de mestrado em Comunicação e Semiótica na PUC-SP em 2007, mostra que o único entre os jornais paulistas que fez uma cobertura à altura da Semana de Arte Moderna foi o extinto Correio Paulistano (1854-1963). Embora de perfil conservador, o Correio Paulistano apoiou a Semana desde os debates que a antecederam –isso porque contava com um dos cabeças do movimento entre seus articulistas, o escritor Menotti del Picchia, que assinava os artigos sob o pseudônimo de Helios.

“Atualmente é como se houvesse uma unanimidade da imprensa em relação ao acontecimento e isso não é verdade”, diz Thalassa. “O mínimo que se esperava de publicações comemorativas é que o que aconteceu realmente fosse citado. Nos dias que antecederam a semana, ela nem aparecia, a não ser em pequenas notas em colunas específicas do que nós chamamos agora de cadernos culturais. Tudo que hoje se fala sobre o evento veio do que aconteceu depois. A imprensa, para fazer uma cobertura honesta, justa, deveria mostrar que no início nada foi percebido com relação à mudança cultural que o movimento traria para toda a sociedade, o salto de vanguarda que estava acontecendo ali.”

Enquanto nos outros jornais os modernistas (ou “futuristas”) eram massacrados com epítetos como “cabotinos”, “idiotas”, “desocupados” e até “aberrações”, Menotti del Picchia, sempre escrevendo como Helios, era uma voz isolada a dar ao evento a dimensão que merecia. “São Paulo –berço de um futurismo social, industrial, econômico– é o berço do futurismo cultural. Daí surgiu em São Paulo um futurismo artístico tão sadio, tão moderno… como o mais evoluído de todo o resto do mundo. Prova disso vai estar no Municipal na próxima semana”, saudava Helios/Menotti em sua Chronica Social em 11 de fevereiro de 1922, dois dias antes da primeira apresentação da Semana, que ocorreria nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro no Teatro Municipal.

Convidado por Alcântara Machado e Graça Aranha para participar da Semana, Chatô, dono dos Diários Associados, espinafra: “Essa semana de arte de vocês não abalará coisíssima alguma. Será no máximo uma semana de secos e molhados. Não contem comigo”

“O futurismo nacional, filho legítimo de São Paulo, vai ter sua consagração em São Paulo”, Helios voltava a animar os conterrâneos na véspera do evento. E, na manhã seguinte à abertura, festejava: “Pela primeira vez tivemos em São Paulo um festival propositadamente revelador de um fenômeno estético do momento. A Semana de Arte Moderna ontem iniciada –seja quais forem as opiniões a respeito– é a primeira expressão de um movimento artístico tomando como centro irradiador a terra paulista”.

No dia 18, após a última noite, lê-se no Correio Paulistano: “Com o triunfo de ontem terminou a gloriosa Semana de Arte Moderna. Que ficou dela? De pé –germinando– a grande ideia. Dos vencidos, alguns latidos de cães e cacarejos de galinha”, escreve Helios/Menotti, protestando contra as hostilidades do público durante o evento. “Eu jamais supus, da alta educação do nosso povo, que pudesse haver quem chegasse a descer à triste condição de um animal para manifestar seu ódio.”

As hostilidades e as vaias, é preciso que se diga, foram alimentadas pelos jornais. A Folha da Noite, embrião da Folha de S.Paulo, era a mais feroz: “Não é só um problema de estética, mas deve ser estudado como fenômeno de patologia mental”, disparava o colunista Mario Pinto Serva, que enxergava, nos modernistas, “um estado de espírito mórbido”, o “desequilíbrio de alguns cérebros”, “espíritos fracos” e “incapacidade mental”. “Grande parte dos futuristas é cabotino”, continuava Serva, para quem o movimento era sinônimo de “teratologia” e que os futuristas eram “aberrações”.

Anúncio no Estadão ironizando os futuristas. Foto: reprodução

O Jornal do Commercio de São Paulo optou pelo caminho da troça, em artigo intitulado Enterro dos Vivos. “Desopilante hebdômada precursora do Carnaval”, adjetiva assim a Semana. “Se, do ponto de vista artístico, aquilo representa o definitivo fracasso da escola futurista, como divertimento foi insuperável.”

Os Diários Associados simplesmente desprezaram o movimento, já que o dono, Assis Chateaubriand, apostara no fracasso da empreitada. É Fernando Morais quem conta, em seu livro Chatô, o Rei do Brasil (Companhia das Letras, 1994). Convidado por Alcântara Machado e Graça Aranha para participar da Semana, Chatô espinafra: “Essa semana de arte de vocês não abalará coisíssima alguma. Será no máximo uma semana de secos e molhados. Não contem comigo, que não quero me meter em nenhum bas-fond acadêmico”.

Graça Aranha insistiu que sua presença era fundamental e lhe deu em primeira mão o texto da conferência de abertura, A Emoção Estética na Arte Moderna. Após ler, conta Morais, Chateaubriand “livrou-se do maço de papéis como se aquilo estivesse contaminado” e partiu para cima do autor. “Vocês enlouqueceram, isso não é arte, não é literatura, é anticapitalismo puro”, bradava. Quando Aranha rebateu que na verdade ele estava com medo da reação de seus amigos milionários, todos conservadores, Chatô assumiu: “É verdade. Não quero desagradar o capitalismo. Não contem comigo nem para a semana, nem para o dia, nem para o minuto da arte moderna”.

“Atualmente é como se houvesse uma unanimidade da imprensa em relação ao acontecimento e isso não é verdade”, diz a jornalista Ângela Thalassa. “O mínimo que se esperava de publicações comemorativas é que o que aconteceu realmente fosse citado”

É curiosa essa alusão do dono dos Diários Associados ao “anticapitalismo” da Semana, porque “bolchevista” foi um dos termos utilizados pelos jornais para atacar os modernistas. Chatô, porém, pagou a língua. “Três anos depois da Semana de Arte Moderna, Chateaubriand escreveria que só mesmo a metrópole de Francisco Matarazzo e Pereira Inácio poderia demonstrar tal entusiasmo pela arte moderna e construiria museus para acolher a expressão artística antes tão atacada”, lembra Ângela Thalassa em sua tese. Em 1946, ele criaria com Pietro Maria Bardi o MASP, hoje Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand.

O Estadão, que cinco anos antes havia publicado o famoso artigo onde Monteiro Lobato desancava com fúria a pintura de Anita Malfatti, apesar de ter dado na íntegra o discurso de Graça Aranha, foi sarcástico ao dizer que a abertura da Semana “em certos momentos lembrava a noite de estreia de Tórtola Valencia”, em referência à sensual bailarina espanhola Carmen Tórtola Valencia, especialista em danças orientais, que havia decepcionado os paulistas no Municipal em 1921 com sua “figura volumosa, de mocidade suspeita”, como noticiou a revista A Cigarra.

Charge do cartunista Belmonte sobre a Semana. Foto: reprodução

O jornal tomou as dores da pianista Guiomar Novaes, que em carta reclamara da execução de uma paródia de Erik Satie para a Marcha Fúnebre de Chopin por Ernâni Braga. “Em virtude do caráter bastante exclusivista e intolerante que assumiu a primeira festa de arte moderna, realizada na noite de 13 do corrente no Teatro Municipal, em relação às demais escolas de música, das quais sou intérprete e admiradora, não posso deixar de aqui declarar o meu desacordo com esse modo de pensar. Senti-me sinceramente contrariada com a pública exibição de peças satíricas alusivas à musica de Chopin”, protestou a pianista, que também se apresentou no evento.

“Para os ‘verdadeiros modernistas’, o passado das nações ou dos indivíduos não conta… Não se lhes pode negar, nisso ao menos, uma certa lógica… Só a senhorita Guiomar Novaes conseguiu ser ouvida em silêncio profundo, mesmo quando executava esse ‘arcaico musicista’ chamado Debussy, naturalmente uma perfeita nulidade para os que querem iniciar a Nova Era”, ironizou o jornal.

Ângela Thalassa conta que, quando iniciou a pesquisa, achava que o Correio Paulistano, por ter sido o único a perceber a importância do que estava acontecendo no Municipal, era um jornal vanguardista. “Porém, ao longo da pesquisa, ficou claro que era um jornal muito conservador”, diz. “Parecia um paradoxo: um jornal conservador, ligado às oligarquias cafeeiras, e a cobertura de um acontecimento de vanguarda. Mas não há paradoxo: o movimento em si também foi um traço de ascensão burguesa, as pessoas envolvidas tinham uma posição social.”

O grupo modernista com Oswald de Andrade à frente em 1922. Foto: Arquivo MIS

De fato, o grande mecenas da Semana de Arte Moderna foi Paulo Prado, oligarca paulista do café nos anos 1920-1930, junto com outras famílias endinheiradas do período. “A Semana foi resultado de um empreendimento econômico em que se associaram Paulo Prado, Alfredo Pujol, Oscar Rodrigues Alves, Numa de Oliveira, Alberto Penteado, Renée Thiolier, Antonio Prado Junior, José Carlos de Macedo Soares, Martinho Prado, Armando Penteado e Edgard Conceição, todos muito ricos e ligados às famílias tradicionais e a grupos econômicos do Estado”, segundo contou Francisco Alambert em A Semana de 22 (Scipione, 1992), citado por Thalassa em sua pesquisa.

Quando o Estadão publica, em 2022, um texto dizendo que “os ricos” criticaram a Semana de Arte Moderna, falta com a verdade para com seus leitores. Não foram os ricos que criticaram a Semana –pelo contrário, uma parte da elite paulista, como se viu, a patrocinou. Quem criticou o evento foram as mentalidades arcaicas, atrasadas, medrosas diante de mudanças na sociedade. E elas, também naquela época, estavam encasteladas na imprensa brasileira.

 


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(3) comentários Escrever comentário

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Ademar Amâncio em 05/03/2022 - 17h33 comentou:

Excelente texto,adorei.

Responder

Ângela Thalassa em 15/03/2022 - 20h23 comentou:

Que delícia ler seu primoroso texto! Grata! Relembrar detalhes da minha pesquisa só nos reforça a certeza de que permanecem encasteladas as mentalidades “arcaicas e medrosas de mudanças”. Isso vemos bem nos embates diários: gritos violentos resistentes a transformações sociais em qualquer área, interessados em manter seu local de privilégio. Cem anos depois ecoam a mesma violência e o mesmo ódio. Em que pese o traço elitista da Semana, como desembaracei na pesquisa, vale refletir – para além de escolas artísticas – sobre como o espaço midiático e social se disponibilizam para as vozes de vanguarda e para as que mantém o status quo em suas devidas épocas. Imaginar a Semana em tempos de redes sociais é contextualizar tais vozes.

Responder

    Cynara Menezes em 16/03/2022 - 08h06 comentou:

    obrigada, querida

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