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Capitalismo repaginado: direita liberal, o despotismo “libertário” dos ricos

Um novo livro disseca a matriz do neoliberalismo e mostra que a aparente incoerência do discurso da direita atual oculta um ideário e um programa consistentes, baseados em concepções elitistas e autoritárias

Os protetores de nossas indústrias. Gravura de Bernard Gillam/Library of Congress
Flavio Lobo
03 de agosto de 2017, 16h58

“Desigualdade não é problema desde que as oportunidades estejam ao alcance de todos.”

Essa afirmação –com pequenas variações– é um dos principais slogans da direita liberal.

Todo mundo sabe, entretanto, que riqueza e dinheiro são essencialmente “oportunizadores”, viabilizadores de oportunidade. E fartas evidências demonstram que, de fato, em sociedades caracterizadas por níveis muito altos de desigualdade econômica, como a brasileira, a distribuição de oportunidades –e de resultados– é fundamentalmente definida pelo ponto de partida: na maior ou menor sorte que se tem ao nascer.

Mas esses fatos, bem conhecidos pelo senso comum e facilmente comprováveis, parecem não incomodar os ideólogos da direita liberal e seus repetidores, que se mantêm inabaláveis diante de realidades que insistem em contrariar suas declarações de intenção.

Em Democracy in Chains, a historiadora Nancy MacLean demonstra haver um ideário e um programa consistentes por trás da incoerência do discurso da direita liberal

Para entender essa incoerência central entre o discurso da atual direita liberal, também chamada de neoliberal, e os efeitos sociais de suas políticas, as revelações de um livro recém-publicado em língua inglesa são preciosas.

Em Democracy in Chains, a historiadora Nancy MacLean demonstra haver um ideário e um programa consistentes por trás dessa incongruência –entre a proclamada defesa de oportunidades iguais e a efetiva degradação das democracias em favor de oligárquicas–, e baseados em concepções elitistas e autoritárias que remontam a concepções que remontam a ideias legitimadoras do feudalismo e do escravismo.

O personagem principal da obra é James Buchanan, um economista ganhador do Prêmio Nobel, mas cuja obra é hoje relativamente pouco conhecida fora dos círculos intelectualizados da direita “libertária” dos Estados Unidos. Suas ideias, entretanto, mostram-se tão contemporâneas que poderiam ser reconstituídas por “engenharia reversa”: por meio da investigação dos pressupostos e efeitos dos programas e das políticas postos em prática pela nova direita que domina o Partido Republicano e compõe o governo de Donald Trump.

Os mais explícitos realizadores do programa desenhado por Buchanan são os irmãos Koch, dois bilionários americanos conhecidos por sua crença “libertária”, mas sobretudo pelo sistemático esforço de moldar a política dos EUA a seu gosto por meio da irrigação do sistema político com várias centenas de milhões de dólares em “doações” a cada ciclo eleitoral. O irmão mais velho, Charles Koch, hoje com 81 anos, foi, segundo MacLean, o maior financiador dos trabalhos de Buchanan, que morreu em 2013, aos 93.

Despotismo “libertário”

A obra central de Buchanan é a Teoria da Escolha Pública, segundo a qual a atividade política deve ser entendida e manejada segundo a lógica individualista-utilitária do mercado capitalista, livre de crenças enganosas na possibilidade de efetiva busca do bem comum. Uma sociedade só pode ser realmente livre se cada cidadão puder vetar e contrariar uma decisão coletiva, dizia ele. Essa afirmação, simpática para anarquistas de variadas vertentes, justifica, neste contexto ideológico, o desejo de grande parte da elite econômica de não ter de pagar impostos e poder dispor livre e plenamente do poder que o capital lhes propicia, sem os obstáculos impostos por sindicatos, regras trabalhistas e outros fatores de “desequilíbrio” e de limitação da sua liberdade.

Buchanan admitia a substituição da democracia por um despotismo dos ricos e poderosos. Podemos nos perguntar se há lógica em promover o despotismo em nome da liberdade

Ao contrário de muitos que hoje defendem políticas e reformas bem ao seu gosto, Buchanan sabia perfeitamente que uma sociedade “livre”, conforme a sua concepção, seria incompatível com a democracia, com o governo da maioria. Sua solução geral para os inevitáveis conflitos entre esses dois modelos era simples: a tal “liberdade” deveria sempre prevalecer sobre a democracia, o que, evidentemente, acabaria resultando na morte do governo do povo, pelo povo e para o povo.

Buchanan admitia a substituição da democracia por um despotismo dos ricos e poderosos. Podemos nos perguntar se há lógica em promover o despotismo em nome da liberdade. A resposta depende da concepção de liberdade que adotamos e de quem consideramos ter o direito de exercê-la.

A condição ideal para o estabelecimento da sociedade livre à Buchanan, supunha o próprio, seria uma ruptura capaz de produzir uma espécie de tábula rasa social e política: uma situação de abrupta suspensão da normalidade, como no golpe militar ocorrido no Chile, em 1973, por exemplo. O episódio, mais conhecido pelo grau de violência e escala do terrorismo de Estado, com seus muitos milhares de presos, perseguidos, torturados e assassinados, foi visto por admiradores da sua obra como o possível parto de uma sociedade mais livre.

Parte das elites chilenas que governaram o país na ditadura de Pinochet se inspiravam nas teses do economista “libertário” e ele os correspondia, inclusive com uma visita, em 1980, para encontrar, em suas palavras, “altos representantes da elite governante, na qual se fundiam as forças armadas e o mundo corporativo”.

Com o fim do milagre econômico chileno, no entanto, as ideias de Buchanan saíram de moda à medida que, como lembra MacLean, ao contrário dos ganhos, privados, do período de crescimento rápido, as perdas da fase de retração foram sendo socializadas.

Buchanan está entre nós

De acordo com o que vem sendo reportado por vários veículos, inclusive pelo jornal britânico The Guardian, os mesmos irmãos Koch que financiaram e disseminaram o trabalho de Buchanan estão envolvidos na arregimentação e doutrinação de movimentos de direita que apoiaram o impeachment da presidente Dilma e continuam atuando no Brasil.

A maioria dos que hoje reproduzem os slogans da direita liberal diria, provavelmente, não concordar com os termos explícitos do programa que esses slogans, na prática, vêm ajudando a implementar. Mas é assim que a ideologia funciona, fazendo-se eficaz pela camuflagem de ideias-chave que propaga e práticas que engendra.

Os mesmos irmãos Koch que financiaram e disseminaram o trabalho de Buchanan estão envolvidos na arregimentação e doutrinação de movimentos de direita que apoiaram o impeachment da presidente Dilma

Fenômeno que ajuda a explicar, por exemplo, por que hoje, no Brasil, este país campeão de desigualdades, gente que se diz democrata e humanista apoia políticas e reformas impostas sem debate, participação e aprovação popular. Um programa sem legitimidade eleitoral, promovido por um governo desmoralizado, que impõe novos sacrifícios aos mais pobres enquanto preservam os privilégios da minoria oligárquica –empresários graúdos, rentistas e altos funcionários públicos. Bem na linha do roteiro traçado por James Buchanan.

Para mais informações sobre a fonte da matrix neoliberal e seus efeitos:

O programa secreto do capitalismo autoritário

Corte profundo no coração do sistema

E o capitalismo morrerá de overdose?

Flavio Lobo é jornalista e um dos criadores da página Escritura Reversa

 

 


(2) comentários Escrever comentário

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Orlando Vilar Maia em 18/08/2017 - 12h04 comentou:

MUITO BOM ARTIGO. PALMAS!!!

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John em 07/09/2017 - 12h59 comentou:

o mimimisus já fez um “relatório” negativo sobre o livro mais uma prova de o que ela diz é verdade aquele instituto é uma espécie de seita religiosa.

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