Socialista Morena
Direitos Humanos

“Marchei contra meu pai genocida”: filhos de agentes da repressão argentina criticam redução da pena pelo Supremo

Ao aplicar redução de pena a torturadores, genocidas e demais agentes da repressão na ditadura, Corte Suprema da Argentina favorece que todos os condenados por barbaridades durante o regime militar sejam colocados na rua

Foto: Federico Cosso/Revista Anfíbia
Cynara Menezes
04 de junho de 2017, 12h07

Uma decisão da Corte Suprema da Argentina revoltou o país no início do mês de maio: a extensão da aplicação de redução de pena para criminosos sem julgamento definitivo aos casos envolvendo direitos humanos, o que favorece a soltura de condenados por torturas e violações durante a ditadura militar. No dia 3 de maio, o Supremo de Mauricio Macri ressuscitou uma lei morta, o chamado “2X1”, para aplicar ao caso de Luis Muiña, um civil detido em 2007 e condenado em 2011 a 13 anos de prisão por ter participado de um grupo paramilitar que torturava pessoas em 1976.

A lei 2X1 prevê que, após dois anos de prisão sem condenação, são computados em dobro os dias em que se passou na prisão. Ao decidir que agora ela é aplicável não apenas a crimes comuns como também a torturadores, genocidas e demais agentes da repressão na ditadura, a Corte Suprema favorece que todos os condenados por barbaridades durante o regime militar sejam colocados na rua. Após protestos generalizados de entidades de direitos humanos, o governo Macri passou a condenar a decisão, embora dois dos três juízes do Supremo que votaram a favor tenham sido indicados por ele, e por decreto, logo após a posse, em 2015.

No twitter, Cristina Kirchner acusou o sucessor diretamente: “no governo anterior esta decisão não aconteceria”.

Mas algo surpreendente aconteceu: filhos de agentes da repressão também protestaram contra a decisão. Em dois artigos publicados na revista Anfíbia, editada pela Universidad Nacional de San Martín, Mariana D. e Erika Lederer criticaram o Supremo por dar a possibilidade de dar a liberdade a torturadores e genocidas, seus próprios pais. Os relatos são impressionantes, e uma razão além da política salta aos olhos. Dentro de casa, eles eram tão violentos e sádicos com a família como eram com quem lutava contra a ditadura.

Leiam ambos os textos, o blog traduziu para vocês. Não esqueçam de colaborar com o tradutor ao final de cada post.

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(Mariana D. Foto: Federico Cozzo/Revista Anfíbia)

(Mariana D. Foto: Federico Cosso/Revista Anfíbia)

“Marchei contra meu pai genocida”

Por Juan Manuel Mannarino, na revista Anfíbia

Tradução de Roberto Cataldo Costa, da Verso Tradutores*

Mariana D. mudou seu sobrenome há um ano. Ela é filha do agente da repressão Miguel Etchecolatz. No dia 10 de maio, ela participou de uma marcha na Praça de Maio. Assim como as 500 mil pessoas que se mobilizaram em Buenos Aires contra o chamado 2×1, como milhões de argentinos, ela quer que seu pai cumpra a pena na prisão. “Ele é um ser infame, não um louco. Um narcisista perverso e sem escrúpulos”, diz ela, que padeceu da violência de Etchecolatz em sua própria casa.

A filha de Miguel Etchecolatz caminha pela Avenida de Maio, esquina com a rua Peru, à procura de suas duas amigas. Não agita o lenço branco nem pula ao ritmo das palavras de ordem. Poderia ser qualquer mulher entre as milhares que comparecem à marcha contra o 2×1. Com exceção de suas amigas, nenhuma das 500 mil pessoas que se amontoaram na Praça de Maio e arredores e gritam “como a los nazis les va a pasar, adonde vayan los iremos a buscar!” sabe que essa mulher anônima é a filha de um dos mais conhecidos homens da repressão. Há um ano, ela mudou de sobrenome, e agora se chama Mariana D.

Mariana chorou quando saiu a decisão judicial que concedeu o 2×1 ao agente da repressão Luis Muiña. Horas após a decisão do tribunal, Etchecolatz, condenado seis vezes por crimes contra a humanidade, pediu o mesmo benefício. Assim como aqueles que marcharam no dia 10 de maio e como milhões de argentinos, ela quer que os genocidas condenados morram na prisão, que seu pai, o ex-comissário Miguel Osvaldo Etchecolatz, morra na prisão. Pela primeira vez, Mariana D. foi a uma marcha pelos direitos humanos. Ela nunca tinha tido coragem de ir à Praça de Maio nos dias 24 de março por medo de ser rejeitada, por medo de não conseguir suportar a dor ao vivo. Mas agora está lá pela primeira vez, para dizer que ela também quer vê-los morrer na prisão.

Etchecolatz foi uma presença fantasmagórica em sua casa de Avellaneda. Mariana e seus irmãos J. M. e F. M. só o viam nos fins de semana. De segunda a sexta, o pai dirigia o aparelho repressivo da cidade de La Plata e arredores. Ele dava ordens para sequestrar pessoas, torturá-las, assassiná-las. Aos sábados e domingos, Etchecolatz quase não falava, e passava deitado numa cama, assistindo televisão. A cada tanto, assoviava: era preciso levar-lhe rapidamente um copo de água mineral gelada, com gás. Se algo não estivesse do seu agrado, Etchecolatz dava tapas de mão aberta em seus filhos.

Já adulta, Mariana soube que sua mãe tentou várias vezes fugir com ela e seus dois irmãos. Ela planejou isso em diversas ocasiões, mas Etchecolatz percebia e ameaçava: “Se você for embora, eu dou um tiro em você e nas crianças”.

Às sete horas da noite do dia 10, a poucas quadras da Praça de Maio, Mariana D., loira, de estatura mediana, movimenta-se com a mesma desenvoltura com que leciona em uma universidade privada. Veste tênis e jaqueta preta, e cada vez que pede licença para avançar entre a multidão, ela sorri. Alguém grita “um médico, por favor, um médico”. Os corpos se apertam uns contra os outros. É impossível chegar à Praça. Mariana fica tonta com o maremoto de gente, dá o braço às amigas, até conseguir tirar o tênis e subir no parapeito de uma estação de metrô. Dali, ela olha as bandeiras da Confederação de Trabalhadores da Educação da República Argentina (CTERA) em defesa da educação pública, as do Partido Operário, as do (movimento de jovens) La Cámpora, os cartazes com os rostos dos desaparecidos.

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“Tendo que me defrontar, na minha história, quase constantemente e não por escolha própria, com as visões que diferentes pessoas, com ideias contrárias ou não às ações horríveis e sinistras do meu pai, fizeram sobre a minha pessoa, como se eu fosse um apêndice dele, e não um sujeito único, autônomo e irrepetível, me tirando da minha verdadeira posição, que é claramente contrária à desse progenitor e a suas ações. (…) Questionada permanentemente e tendo sofrido inúmeras dificuldades por ter o sobrenome cuja supressão eu solicito, minha história é repugnante, um sinônimo de horror, vergonha e dor. Não há nem houve nada que nos una, e eu decidi, com esta solicitação, pôr um ponto final no grande peso que para mim significa arrastar um sobrenome manchado de sangue e horror, alheio à constituição da minha pessoa. Além do exposto, minha ideologia e meus comportamentos foram e são absoluta e decididamente contrários aos dele, não havendo o menor grau de sintonia com a pessoa acima citada. Porque não há qualquer afinidade do meu ser com esse genocida.”

Argumentos pessoais sobre o pedido de mudança de sobrenome de Mariana Etchecolatz para Mariana D., mulher nascida em 12 de agosto de 1970, em Avellaneda. Texto apresentado em novembro de 2014 a uma Vara de Família da cidade de Buenos Aires.

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– Quando você ouviu falar pela primeira vez do que o seu pai tinha feito?

– Eu era jovem. Foi muito difícil, porque nós vivíamos em uma bolha, subjugados e desinformados. Nós aparentávamos o que não éramos. As pessoas que nos rodeavam diziam: “Que chefão é o seu pai!”. Não havia quem nos dissesse: “Olha o que esse filho da puta fez”. Bastou ouvir um testemunho em um julgamento para eu não precisar de mais nada. Até hoje me dá náusea.

Mariana é psicanalista e, no consultório, ela ouve alguns pacientes com problemas de sono. Desta vez, é ela que não consegue dormir depois da marcha. Em seu apartamento, onde vive com seu companheiro Nicolás e três cães que encontrou na rua, ela faz zapping e põe um filme do Rei Lear. Ela diz que sente a mudança de sobrenome como uma “reparação”, mas continua preocupada com “esse governo de direita que avança contra os direitos do povo”.

O dia em que o correio lhe enviou o documento novo e ela abriu o envelope, ela se desesperou. Ainda tinha o sobrenome Etchecolatz. “Foi um erro administrativo, então eu tinha que fazer de novo. Veja só quanto me custou apagar esse estigma.”

– O que você sente com a sua nova identidade?

– Eu me sinto calma, perdi o medo e adquiri a maturidade necessária. O episódio da marcha foi comovente. É preciso ter a memória alerta. Eu me sinto acompanhada, porque nós somos milhões.

– E como vivem os seus irmãos e a sua mãe?

– Todos nós nos libertamos de Etchecolatz depois que ele foi preso pela primeira vez, em 1984. Nós morávamos no Brasil porque ele era chefe de segurança dos Bunge e Born, e voltou pensando que a sua denúncia era uma formalidade, como se a justiça não fosse lhe chegar aos calcanhares. No começo, nós o visitávamos, mas depois, a minha mãe, María Cristina, conseguiu dizer na cara dele que deixaríamos de vê-lo. Ela sempre nos protegeu desse monstro; se não fosse pelo amor dela, não teríamos conseguido construir uma vida. E meus irmãos J. M. e F. M. foram morar longe de Buenos Aires, cada um construiu a sua família e agora somos muito unidos. A minha mãe se casou com um homem que ama, e está no exterior. Ninguém chegou ao que eu cheguei, mas eles me apoiam.

– Para você, o seu pai era um monstro? Você viveu essa situação assim?

– A mera presença dele incutia terror. O monstro que conhecemos desde a infância não era que um papai doce que depois se converteu. Nós vivemos muitos anos conhecendo o horror. E na adolescência foi duplo: o de dentro e o de fora. É por isso que nós também fomos vítimas. Ser a filha desse genocida me impôs muitas dificuldades.

– Quais, por exemplo?

– Ter um sobrenome assim, de certa forma, obriga a sustentar o que ele fez, e isso eu não permito mais. Além disso, nunca houve um vínculo verdadeiro com ele. Aquilo me produziu angústias imensuráveis, marcas de trauma infantis, e a isso se soma o que todos nós fomos sabendo sobre o seu papel criminoso no terrorismo de Estado. Ele foi a personificação do mal em todos os âmbitos.

– Ele nunca era afetuoso com você?

– Não. Etchecolatz fez tudo o que um pai não faz. Era um ser invisível, que usava a violência e não se podia dizer nada. Ele parecia ter uma família, mas tinha nojo de nós e era adorável com gente de fora. Vivíamos arrastados por ele, com mudanças o tempo todo, sem laços, sem amigos, sem pertencimentos. Uma realidade cerceada. Ele destruiu a nossa vida, mas conseguimos nos reconstruir.

***

Há algo que Mariana nunca vai conseguir explicar a si mesma: como um homem criado no campo, nos pampas úmidos de Buenos Aires, de família honesta e humilde, veio a se converter, tendo instrução básica e rudimentar, em um dos executores mais frios e eficientes da máquina do terror. Aos 13 anos, ele ingressou na Escola Vucetich e, um tempo depois, ganhou a confiança de Ramón Camps, chefe de polícia da província de Buenos Aires.

A conversa acontece na sala de estar da casa dela. A poucos metros, em uma biblioteca, há livros de Zygmunt Bauman, Julio Cortázar, Noam Chomsky, Juan José Hernández Arregui e Edgar Allan Poe.

Mariana quer destacar a figura de sua mãe, a quem considera uma vítima da violência de gênero. Etchecolatz tinha 20 anos mais do que ela, e eles se conheceram quando ela foi fazer uma denúncia na delegacia da polícia de Avellaneda. “Ela se apaixonou por uma imagem. Pouco depois, ele começou a bater nela, ascendeu rapidamente na polícia e a minha mãe fez o que pôde. Ela resistiu, mas era como lutar sozinha contra toda uma força policial. E quando cortamos relações com ele, começamos do zero. A minha mãe nunca tinha trabalhado e vivemos com o mínimo, mas com um alívio descomunal”, ela diz. E chora.

***

A primeira infância foi feliz. Mariana D. viveu na casa de seus avós maternos em Avellaneda, que eram chamados de “Perón e Perona”, por sua simpatia pelo movimento peronista. A avó fazia churrascos no pátio. Sua mãe era filha única e eles desfrutavam da visita de amigos músicos, cantavam tangos, ouviam ópera. Alguns tios-avós pegavam as crianças no colo e lhes compravam doces.

– Eles eram trabalhadores, do interior de Buenos Aires. Em função de seu cargo de chefia, Etchecolatz já vivia pouco conosco. Meus avós não gostavam dele, e o chamavam de o “bicho ruim”.

Mariana jamais reconhecerá a Miguel Etchecolatz usando a palavra pai, ou papai. Ela vai sempre chamá-lo pelo sobrenome.

Quando ela tinha oito anos, eles foram morar em La Plata e o inferno começou. Mariana nunca conseguiu completar mais de um ano na mesma escola. Ela e os irmãos eram transferidos “por segurança”. Ela não conseguia fazer amigos, e eles se relacionavam com os filhos de outros agentes da repressão conhecidos, como o ex-médico Jorge Antonio Bergés e o próprio Camps, que foi padrinho de F. M., o filho mais novo de Etchecolatz.

O batizado de F. M. aconteceu na residência oficial do chefe máximo da força, uma mansão em La Plata. A família Etchecolatz viajou em cinco carros, “por segurança”, e havia escolta de reforço. Caiu uma forte tempestade. Miguel Etchecolatz estava atento a um rádio. Eles o chamavam de “Dorotea Inés” –apelido que combinava as iniciais de sua posição como diretor do Departamento de Investigações.

– Dorotea Inés, Dorotea Inés, houve um acidente, gritou um membro da escolta policial. Um guarda tinha dado um tiro em si mesmo com uma arma automática, depois de passar por uma lombada. Etchecolatz desceu de seu carro, constatou a morte de seu subordinado e continuou como se nada tivesse acontecido. O batizado continuou em total normalidade.

– Eu nunca o vi sofrer. Nem mesmo quando, uma vez, colocaram uma bomba na chefatura da polícia e lhe romperam o ouvido. No hospital, ele continuava dando ordens como um robô. Os filhos de Bergés ou de Camps pelo menos receberam algum amor; nós, nada –diz Mariana.

– Nada o comovia?

– O que fosse religioso. Ele fazia o sinal da cruz, beijando as imagens. Ele se considerava inferior a Deus, mas superior aos mortais. Eu e meu irmão J. M. dizíamos que quando ele rezava, estava devorando os santos.

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A segunda infância foi a época de viver com escoltas, que cumpriam a função de babás que dormem no serviço em um edifício blindado de três andares, na esquina das ruas 62 e 11, em La Plata. As crianças não conseguiam dormir em paz. Certas madrugadas, estouravam tiros e a mãe lhes tapava os ouvidos com cobertores e colchões. De dia, ela os levava para passear pela Escola Vucetich e pelo parque do clube Tiro Federal. Etchecolatz passava a noite na delegacia.

– Nós o víamos nas festas oficiais, em desfiles. Em nós, ele incutiu o mesmo medo e respeito que incutia em seus subordinados.

Aos sábados e domingos, quando Etchecolatz aparecia no edifício da esquina da 62 com a 11, Mariana e J. M. se escondiam em um guarda-roupa. Bastava as crianças ouvirem a voz metálica para tremerem à espera de uma explosão de fúria contra elas ou sua mãe. Ele nunca olhou os cadernos escolares, nunca brincou com elas, nunca lhes fez uma carícia.

Quando ele saía do edifício, Mariana e seus irmãos começavam a rezar. Para que ele nunca mais retornasse. “Por favor, que ele morra”, ela pensava naquela época.

***

Uma vez, Mariana se lembra, ele a levou para ver um filme, num dos poucos passeios que fizeram juntos. Ela era a filha rebelde. “Olhe o que você me obriga a te fazer”, lhe dizia seu pai quando a punia. Ele mexia a mandíbula e as mãos, preparava a cena com frases como “Mmm … querida” ou “Marianita, Marianita”, como se avisasse de uma futura surra. Depois de bater com a mão aberta, pedia desculpas. Ele era magro, alto, tinha as costas pequenas, e era tão forte que um dia quebrou um vaso no meio com as mãos, sem jogá-lo no chão. Mariana tinha 15 anos quando Etchecolatz a convidou para ir ao cinema. Eles nunca se falaram, nem antes, nem durante nem depois do filme. Era A História Oficial. Mariana fechou os olhos quando o personagem de Héctor Alterio apertou os dedos de Norma Aleandro contra uma porta, reconhecendo a cena como familiar, e jamais a esquecerá. “Não tenho nenhuma dúvida de que foi um prazer silencioso, o do perverso, que é o que mais dói”, diz ela agora, com a precisão de uma perícia psicológica.

***

Ela diz que começou a sair à rua com “Néstor e Cristina”, que sentia os escrachos da H.I.J.O.S. (organização de filhos de desaparecidos) como se fossem próprios, que nunca vai se esquecer do velório de Néstor Kirchner e do fim do mandato de Cristina Fernández de Kirchner. “Foi bonito ver o quanto estávamos politizados, ir a cada manifestação; esse povo não vai sucumbir diante dos poderosos.”

Quando tinha 20 anos, ela se afastou da família. Viajou para a Espanha, voltou, morou sozinha, trabalhou como secretária. Começou a estudar na Faculdade de Psicologia, mas não na Universidade Nacional de Buenos Aires, como queria. Seu irmão F. M. abandonou a faculdade. “A sua prova está desaparecida”, disse um professor.

– O terrível é que eu e meus irmãos nos refugiamos no anonimato por causa da sombra desse filho da puta. Eles não aguentaram e saíram da cidade, mas eu decidi ficar. Viver assim é duro, humilhante. Eles me davam notas baixas nas provas por causa do sobrenome e eu voltava para casa com um ataque de angústia.

Havia gente que não cumprimentava Mariana pelo simples fato de ter esse sobrenome. Ao entregar o cartão de crédito para pagar a compra em uma livraria, do outro lado do balcão, ela ouvia: “Que sobrenome!” E ficava muda. Não sabia, não conseguia responder com uma palavra ou fazer um gesto.

A última vez que ouviu a voz de seu pai foi na prisão de Magdalena, em 1985. Ele disse: “Que vergonha esses esquerdistas, o que me fizeram”. E nada mais.

– Como você se sentia quando ouvia o seu sobrenome na mídia?

– O terror me invadia. Eu me angustiei desesperadamente com o caso de Julio López (testemunha contra o pai de Mariana que desapareceu). Eu receio que Etchecolatz ainda esteja sustentando poder da prisão, ele não é um nenhum velhinho doente, ele simula tudo. Ainda tem gente que pensa que ele foi alguém íntegro porque “nunca roubou nada”. Como se isso o absolvesse dos crimes hediondos que cometeu.

– E quem é Etchecolatz, de verdade?

– É um ser infame, não um louco, alguém que se preocupa mais com suas convicções do que com os outros, alguém que se considera sem defeitos, um narcisista perverso e sem escrúpulos. Antes, me doía ouvir o nome dele, mas agora eu estou inteira, liberta.

– O que você deseja a partir de agora?

– Que ele não saia nunca mais. Eu nunca tinha me animado a contar a minha história. E tudo que eu quero expressar diante da sociedade é o repúdio a um pai genocida, um repúdio que sempre esteve em mim. Melhor dizendo, o repúdio de uma filha a um pai genocida.

 

*PAGUE O TRADUTOR: Gostou da matéria? Contribua com o tradutor. Todas as doações para este post irão para o tradutor Roberto Cataldo Costa. Se você preferir, pode depositar direto na conta dele: Verso Tradutores, Banco Itaú, agência 0159, conta corrente 85645-9, CNPJ 10.873.688/0001-78. Obrigada por colaborar com uma nova forma de fazer jornalismo no Brasil, sustentada pelos leitores.

 

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(Ilustração: Julieta Di Marziani/Revista Anfíbia)

(Ilustração: Julieta Di Marziani/Revista Anfíbia)

Filhos de agentes da repressão: da dor à ação

Por Erika Lederer, na revista Anfíbia

Tradução de Roberto Cataldo Costa, da Verso Tradutores*

O testemunho de Mariana D., filha de Miguel Etchecolatz, mobilizou outros filhos de agentes da repressão a estabelecer redes entre si. “Juntar-nos para quê? Não para continuar nos deleitando em nossas dores, e sim para organizar e aportar dados aos familiares que ainda buscam justiça e seus netos, e para que possam chorar seus mortos”, escreve Erika Lederer. Seu pai foi um obstetra que atuou na maternidade clandestina do Campo de Maio, nos anos 70. Um texto que reflete sobre o peso do sobrenome, a culpa e a construção da identidade.

Meu nome é Erika, com K, pois, em novembro de 1976, em Salta, um par de botas impôs medo suficiente no Registro Nacional de Pessoas para que ninguém se opusesse a registrar um nome que não era permitido na época. Eu nunca soube do que eles se vangloriavam ao contar essa história. É fácil imaginar: eles se vangloriavam, com uma impunidade alegre, do poder exercido diariamente nas pequenas cotidianidades.

Eu não cheguei a ficar um mês na província do norte. Meu pai, obstetra e carapintada (militares argentinos que se sublevaram contra os governos eleitos democraticamente), anos mais tarde, foi transferido a La Plata. Eu me lembro e sei que há fotos conservadas da celebração pela vitória da Argentina na Copa do Mundo de futebol, na praça daquela cidade. Em 1979 já estávamos no Campo de Maio, um dos grandes centros clandestinos de detenção. O meu pai era um dos obstetras da maternidade que funcionava lá. E foi lá que, nesse mesmo ano, nasceu o meu irmão.

Eu tenho algumas lembranças daqueles anos, como quando eu destruí a creche que eles tinham para os filhos dos militares. Eu me vejo pulando de berço em berço, acordando os bebês. Também me lembro de uma girafa enorme, grande demais para os meus dois anos e oito meses. Também tenho presentes as surras que recebia por me infiltrar entre as botas durante os desfiles.

Foi quando eu estava no terceiro ano, em torno de 1984, que alguma coisa no relato familiar começou a não encaixar. Foram esses buracos na história que, pouco a pouco, semearam dúvidas e desconfianças em relação ao relato que era hegemônico na família. Nem Papai Noel existia, nem o meu pai era tão bom.

Dessa época, me lembro dos meus problemas para estabelecer vínculos, da asma e do medo de falar. Algo não se encaixava na minha pequena lógica. Uns anos depois, ainda estudante primária, eu ouvi da boca do meu pai, entre outros relatos, o dos voos da morte. (Eu nunca consegui entender o que ele fazia em relação ao juramento de Hipócrates, já que o paradoxo é intransponível: a mão que cura é a mesma mão que pode torturar, dar à luz, decidir sobre a vida e também educar, acompanhar à escola, abraçar e bater. Uma sucessão constante de dissociações, todas com seu preço).

Também me lembro de não conseguir falar, dos golpes recebidos, da vergonha, dos textos proibidos, dos filmes vedados e, principalmente, dos argumentos poucos fundamentados pelos quais deveríamos acreditar que a nossa visão da história era correta. Eu acho que tudo isso foi deslegitimando a figura paterna e me permitiu questioná-la e me questionar.

Nessa época, exemplares do jornal Página/12 eram escondidos em casa como parte dos assuntos de que não se podia falar, principalmente com Mercedes. O que tinha de particular a família da minha colega de escola? Eu posso dizer que sou infinitamente grata por ter tido, posteriormente, uma quantidade imensa de Mercedes que me abriram os olhos. O estranho é que eles nunca souberam tudo o que semearam em mim. A dúvida rompe o hegemônico.

Por que há tantas coisas das quais não se pode falar? Por que papai aparece em um jornal? O Página/12 o havia escrachado por defender Camps (e aí a gente vai crescendo, lendo –nada mais lindamente subversivo, para usar o termo que eles entendem– e se informando sobre quem eram esses personagens sinistros). Mas há idades nas quais a gente não tem essa informação ou não pode abordá-la. Uma criança não está preparada para assimilar que seus pais não agem certo.

***

Em 24 de março deste ano, a minha filha mais nova, Alba Libertad, me perguntou, aos seus nove anos (será uma casualidade a aquisição de consciência nessa idade?) se seu avô estaria preso, caso estivesse vivo. “Sim”, eu respondi imediatamente. Eu nunca a vi chorar como naquele dia. Nunca. Algo havia se rompido naquela infância, mas não poderia ser diferente. Lembrei-me de que, quando eu tinha essa idade, perguntei ao meu pai se ele tinha matado. Há perguntas das quais não existe volta possível, porque elas são, de alguma forma, maiêuticas e nos solicitam como sujeitos. Ao sair da caverna, depois de se iluminar e ver as imagens verdadeiras, o escravo deveria retornar para contar o que tinha visto fora dela.

É certo que a verdade dói, mas ela é necessária para que possamos nos construir como sujeitos. E isso vale para aqueles de nós que devemos cuidar da merda que nos cabe. Não se pode viver eternamente dissociado.

Nós, os filhos dos milicos –e mais ainda se o seu pai era membro de comando e carapintada– éramos formados segundo determinados valores mais do que outros, isto é, éramos educados para sermos valentes. O pior defeito que poderíamos ter era o de ser covardes. Eu agradeço que tenha sido assim: a valentia era necessária para olhar o carrasco nos olhos e, ainda assim, sustentar a palavra. Memória, Verdade e Justiça. Bem claro e sem vacilar.

Todas essas preocupações, esses fissuras dentro do relato totalitário paterno, se romperam quando eu tinha 15 anos, talvez já aos 14. Se o homem que deveria me cuidar apontava uma arma para a minha mãe na minha frente, ele era capaz de qualquer outra coisa. O que é pessoal é político. O respeito para com um Outro, os abusos de autoridade e poder, a violência como modo de disciplinamento são exercidos dentro e fora do seio da família. Se o meu pai podia me bater com a ferocidade que batia, sendo sua filha, por que não faria isso com pessoas desconhecidas?

***

Eu tinha uns dez anos quando peguei um gato de rua. Caso vocês não saibam: os felinos não são os animais preferidos dos militares. Diante de uma tesoura de jardineiro, eu entendi que a história das sete vidas é pura bobagem, e o gato foi descartado em um saco de lixo preto. Esses métodos acabam assustando qualquer subjetividade.

Outra coisa que um milico tenta quebrar é a vontade; nada de querer ter ideias próprias. Eu estudei Direito (embora gostasse de filosofia, um curso que me foi proibido) com um único objetivo que me acompanhou a cada ano: me formar e sair daquela casa. Nessa época, o meu pai já não era mais militar, mas havia sido acolhido pela Polícia Buenos Aires e pelas empresas Techint e Estaleiros Astarsa​​. Lembro-me da última surra, quando eu já era grande, depois que ele encontrou um jornal trotskista meu. Entrei no meu quarto e vi tudo revirado, como as revistas em locais de confinamento. Eu jurei ir embora e nunca mais voltar, o que realmente aconteceu.

Em agosto de 2012, eu me lembro de comemorar o aparecimento de Pablo Gaona Miranda, o neto 106. Durante a noite e encurralado pela situação judicial, meu velho decidiu tirar a própria vida. Fez-se justiça popular.

Questionar o relato totalitário paterno (duvidar dele) é necessário como primeiro passo para a conscientização (meu pai não está agindo bem). E, com relação à identidade, viver sob o jugo de incerteza e de não saber quem você é não é algo que permita a construção de uma subjetividade que não seja frágil.

Quando as Avós da Praça de Maio se comunicaram comigo sobre a possibilidade de que o meu DNA fosse compatível com os que foram fornecidos ao Banco Nacional de Dados Genéticos (BNDG), a primeira sensação que eu tive foi de traição. Fizesse o que fizesse, eu estaria traindo –a quem me criou ou às minhas próprias convicções, que foram o que me levou à sede das Avós (Virrey Ceballos, 592), e depois ao Hospital Durand. A verdade é que não era compatível, e isso significava eu assumir que era filha daquele personagem. A partir dessa certeza foi que eu consegui falar e assumir o caminho que me cabia. Um caminho que não foi escolhido, mas que, no entanto, é meu. Por essa razão, e sendo existencialista, eu não senti necessidade de mudar meu sobrenome, e sim de assumir um compromisso verdadeiro com a busca da verdade.

O milico costuma ser implacável, e é preciso estar preparado para defender uma ideia (Julio López é um argumento nesse sentido).

***

Enquanto escrevo isso, meu filho me envia uma mensagem de texto me perguntando se seu avô havia cometido suicídio. Até agora, ele sabia de todas as coisas que o avô tinha feito, inclusive que, se fosse vivo, estaria em cana, mas não sabia como havia terminado. Eu não achei oportuno falar de suicídio na idade dele, pois me parecia uma crueldade desnecessária, mas hoje eu devo responder a essa pergunta da única maneira possível: com a verdade. E a dor de criança, novamente.

Além disso, não nos esqueçamos, ele não se arrependeu. Meu pai jamais se arrependeu.

Quando eu li o artigo da revista Anfibia sobre Mariana, a filha de Etchecolatz, me vieram à mente –e ao corpo, principalmente– mil lembranças. É difícil se livrar delas, que são como uma música abafada e nem um pouco alegres, é claro. A dissociação, a culpa, a angústia (porque a pessoa pode compreender racionalmente que não teve nada a ver com aquilo, mas carrega a pedra de Sísifo, de qualquer maneira) encontram a palavra como cura, como ferramenta para dar nome e gerar presença, quem sabe se uma história não vem para completar lacunas ou jogar um pouco de luz sobre os relatos de familiares que ainda hoje procuram respostas.

Quando pedem esquecimento, nós temos o dever cívico e humano de dar presença e memória; a palavra dá nome e mantém vivo o relato. É por isso que o relato de Mariana emociona, conclama e, em alguns aspectos, obriga. Ele nos instiga a contar, a dizer o que sabemos, por pouco, insuficiente ou mal expresso que seja. Ser participantes da construção da história é um compromisso coletivo. Ainda há netos por aparecer e corpos dos quais se despedir (até na Antiguidade se permitia sepultar os mortos do inimigo).

Ler o testemunho da filha de Etchecolatz me gera, além da angústia pelas lembranças, a possibilidade de transformá-las em ação dotada de sentido, o que é mais útil e consequente. Assim surgiu a ideia de nos juntarmos. Filhos de milicos genocidas sob um único slogan inabalável: Memória, Verdade e Justiça. E isso precisa ficar mais claro do que nunca no contexto atual: famílias de genocidas são recebidas em gabinetes do governo, concedem-se benefícios na execução das penas aos genocidas condenados, foi feita uma campanha (que ganhou uma eleição) contra o “cabide de empregos” dos direitos humanos e o mais alto órgão jurídico argentino desconsidera instrumentos internacionais sobre o tema, argumentando e sentenciando em favor da aplicação da famosa, mas não vigente, lei dos 2×1. Isso significa apagar o que foi conseguido com anos de luta. É incrível que voltemos a ouvir falar dos dois demônios. Foi um só, e se chamou Terrorismo de Estado. Não há reconciliação possível com as Cecilias Pando da vida. Em 2012, houve justiça, porque ou o meu pai acabaria preso na prisão Marcos Paz ou acabaria como acabou. Que resposta judicial haveria hoje para um caso como o do meu pai?

Agora, nos juntarmos para quê? Não para continuar nos deleitando em nossas dores, e sim para nos organizarmos a fim de fornecer informações aos familiares que ainda buscam justiça e netos, e para que possam choram seus mortos. Quando a palavra circula, a História permanece viva. Quando damos nome, geramos presença. E é aí que podemos ter certeza de que não nos venceram.

 

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