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Matrix é um filme trans? Revisitando as Wachowski sob uma ótica de gênero

A condição de transgênero na obra das irmãs cineastas nem de longe é tão simples quanto “a pílula vermelha é estrogênio”

Keanu Reeves em detalhe do cartaz de "Matrix Resurrections". Foto: reprodução
The Conversation
01 de fevereiro de 2022, 18h33

Naja Later, no The Conversation
Tradução Maurício Búrigo

Com Matrix Resurrections de Lana Wachowski nos cinemas, iremos ver um monte de críticas explicando o conjunto de filmes das irmãs Lana e Lilly Wachowski através de uma lente trans. Eu não vejo a hora de isso acontecer, na verdade: é uma grande oportunidade para críticos trans, e há tão poucos filmes de Hollywood –e tão pouca cultura pop em geral– com criadores abertamente trans para se comentar…

Lilly Wachowski, citada no excelente livro de Cael M. Keegan, The Wachowskis: Sensing Transgender (As Wachowski: Percebendo o Transgênero), disse uma vez: “Há um olhar crítico voltando a ser lançado sobre nossa obra, minha e de Lana, através da lente de nossa condição de trans, e isso é uma coisa legal, porque é um lembrete excelente de que a arte nunca é estática”.

Matrix, o filme mais popular das Wachowski, está maduro para uma leitura trans. A crítica da revista Vulture, Andrea Long Chu, o resume assim: “Neo tem disforia. A Matrix é o binário de gênero. Os agentes são a transfobia. Você capta isso”.

Matrix, o filme mais popular das Wachowski, está maduro para uma leitura trans. A crítica da revista Vulture, Andrea Long Chu, resume o filme assim: “Neo tem disforia. A Matrix é o binário de gênero. Os agentes são a transfobia. Você capta isso”

Eu também advertiria para o risco de a arte das Wachowski se tornar “estática” enquanto arte trans. Política identitária, cultura de celebridades e a ritualização do “sair do armário”, tudo isso influencia nossa compreensão das Wachowski e de sua obra.

Seria fácil interpretar a lista de obras das Wachowski como congenitamente trans, mas, ao fazê-lo, talvez estejamos aplicando em excesso a teoria do cinema de autor.

A teoria do cinema de autor foi originalmente cunhada pelo cineasta-crítico François Truffaut em 1954: ele privilegiava filmes originais feitos por diretores com características estilísticas peculiares. A teoria foi polêmica porém popular no mundo anglófono desde que Andrew Sarris adaptou a ideia para Hollywood nos anos 1960, propondo (embora com ironia) a noção de que “o diretor é rei”.

Yahya Abdul-Mateen como Morpheus. Foto: Murray Close/Warner Bros

A teoria do cinema de autor mitifica o diretor como o singular visionário por trás de um filme. Embora dar reconhecimento às características dos cineastas possa ser recompensador, um ótimo filme não deveria depender disso.

A teoria do cinema de autor põe demasiada ênfase na vida pessoal de um contador de histórias em sua obra pública. Quando falamos de representação autêntica na cultura pop e da histórica sub-representação de contadores de história marginalizados, é tentador fundi-las como um produto só.

Em nível superficial, faz sentido que pessoas trans devessem contar histórias trans, mas isto logo se torna um argumento para que apenas pessoas trans possam contar apenas histórias trans. Isto é inquietante sobretudo com identidades trans. Nem toda pessoa trans faz a transição antes de começar a difundir sua obra.

Se as Wachowski nunca tivessem tornado pública sua transição, esses filmes seriam ainda considerados trans? Suas narrativas iriam ainda repercutir com os numerosos fãs que saíram do armário como trans desde que viram Matrix?

É indiscutivelmente provável que, na história de Hollywood, grande quantidade de cineastas fossem trans: nós é que não sabíamos. Esta lógica afetou de maneira profunda o primeiro filme das Wachowski, Ligadas pelo Desejo, de 1996: Keegan nota que o filme foi interpretado como ícone do cinema lésbico na época. O sucesso das Wachowski em Hollywood não pode ser dissociado de que elas ficassem dentro do armário: Lana transicionou em 2010, entre a direção do seu sexto filme (Speed Racer) e do sétimo (A Viagem). Lilly revelou sua transição em 2016, depois de ameaças do tabloide Daily Mail de tirá-la do armário de qualquer maneira.

Temos de perguntar: se as Wachowski nunca tivessem tornado pública sua transição (sobretudo no caso de Lilly, uma vez que foi exposta contra a sua vontade), esses filmes seriam ainda considerados trans? Suas narrativas iriam ainda repercutir com os numerosos fãs que saíram do armário como trans desde que viram Matrix? Penso que sim: não é uma coincidência que tantos fãs trans se identifiquem com narrativas em torno da descoberta do verdadeiro eu e de lutar para libertar os outros dos constrangimentos da vida normativa.

Poderia um fiasco de bilheteria como O Destino de Júpiter, ambicioso ao extremo e, de uma maneira deliciosa, um filme de garotas, ter sido feito sem a trajetória única das Wachowski? Sim, é tentador analisar retroativamente a obra delas como trans –Keegan identifica a revisitação como parte do processo trans–, mas seria um desapontamento se limitar ao finito catálogo de filmes de duas diretoras. Esta é uma oportunidade para considerar os limites da teoria do cinema de autor, e o quanto deveríamos partir das vidas pessoais de diretores para ajustar a forma com a qual interpretamos uma obra.

Channing Tatum e Mia Koonis em “O Destino de Júpiter”. Foto: divulgação

A teoria do cinema de autor corre o risco de omitir interessantes narrativas sobre gênero de diretores –e outros criadores– que não se assumiram como trans ou que simplesmente contam histórias com perspicácia sem que tenham a experiência pessoal de serem trans. Não precisamos revelar um membro de equipe trans por trás dos filmes de Guillermo del Toro para acharmos que suas metáforas de amor e monstruosidade ecoam consideravelmente nossas próprias experiências trans –daria na mesma se assistíssemos Alien, o 8º Passageiro ou Hackers – Piratas de Computador e disséssemos “ora, isto tem a ver com gênero”.

Um resultado deste argumento de que “apenas criadores trans podem contar histórias trans” é o mito perigoso de que pessoas trans sejam congenitamente falaciosas se ficarem dentro do armário por segurança, privacidade ou simplesmente como uma preferência. Devemos nos permitir supor que qualquer um pode contar uma história interessante sobre gênero, seja cis ou trans; seja o diretor ou o supervisor da equipe de câmeras.

Devemos nos permitir supor que qualquer um, seja cis ou trans, pode contar uma história interessante sobre gênero. Se admitirmos isso, podemos admitir também a ideia de que criadores trans são capazes de fazer narrativas sobre qualquer coisa

Se pudermos admitir a ideia de que narrativas trans podem ser feitas por qualquer um, podemos admitir também a ideia de que criadores trans são capazes de fazer narrativas sobre qualquer coisa. A obsessão pelo que sabemos acerca da vida pessoal das Wachowski pode eclipsar outras análises.

Há temas raciais e coloniais inquietantes em filmes como A Viagem que são escamoteados através de uma abordagem trans (branca), e um fascinante contexto britânico/anglicano em V de Vingança que desaparece com o repúdio do autor original, Alan Moore, a todas as adaptações para o cinema de seus quadrinhos. Embora a análise trans seja interessante, e haja muito a se dizer, ela pode significar passar por cima de outras narrativas e problemas na obra das Wachowski.

Dirigido por James McTeigue, “V de Vingança” tem roteiro das Wachowski. Foto: divulgação

A condição de trans na obra das Wachowski nem de longe é tão simples quanto “a pílula vermelha é estrogênio”. Se pudermos olhar para além da moda dos filmes-cifrados, há maneiras mais significativas de pensar em gênero que não exijam um Ph.D. em Baudrillard.

Matrix propõe que a sua autoimagem esteja separada do seu corpo físico; que todos aqueles criados num sistema opressivo defenderão com fervor esse sistema a não ser que estejam prontos a se destacarem, livrando-se dele; que todos nós caímos ao primeiro salto, mas que, com o amor e a confiança dos outros, podemos nos tornar nós mesmos; que nosso dever é libertar os outros depois disso e destruir o sistema inteiro, de modo que não possa ser reconstruído.

Sim, o gênero é um desses sistemas, mas filmes como A Viagem e O Destino de Júpiter dizem mais respeito à exploração de corpos proletários para alimentar o luxo superficial: estes temas têm mais a dizer acerca do capitalismo do que uma leitura que trate das entrelinhas de gênero como dicas de palavras-cruzadas.

As Wachowski sempre estamparam, com uma marca indelével, seus filmes e material suplementar: isto e os inconfundíveis argumentos que são sua marca fazem delas uma ótima escolha para a teoria do cinema de autor.

Tratar das obras das Wachowski como autobiografias criptografadas pode levar a ignorar o tipo de paradigmas que elas procuram destruir e o potencial de todos os contadores de histórias de desafiar sistemas pelos quais não sejam publicamente oprimidos

Ao ressaltar uma mão-de-obra invisível no texto, somos provocados a considerar o tipo de mão-de-obra que foi dedicada à feitura do texto. Demasiada dependência da teoria do cinema de autor pode obscurecer o trabalho criativo em equipe que ocorre ao se fazer um filme.

Tratar de suas obras como autobiografias criptografadas pode levar a ignorar o tipo de paradigmas que elas procuram destruir e o potencial de todos os contadores de histórias de desafiar sistemas pelos quais não sejam publicamente oprimidos.

Tenho certeza de que haverá muitas análises fascinantes, nuançadas, guiadas pelo trans, de Matrix Resurrections. O que espero ver é a análise de Matrix Resurrections como algo mais que um filme das Wachowski, como algo além de um filme trans –e mais análises trans de todos os filmes.

Naja Later é orientadora acadêmica em Mídia e Comunicação na Swinburne University of Technology

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