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Médico cubano: “peço perdão às minhas crianças por não ter dito adeus”

O emotivo depoimento de Arnaldo Cedeño Núñez, que atendia os indígenas da etnia Apalaí Waiana, no Pará

O médico cubano Arnaldo Cedeño com "suas" crianças. Foto: reprodução facebook
Do Cuba Debate
21 de novembro de 2018, 14h49

Por Minoska Cadalso Navarro, no Cuba Debate

“Não vou esquecer nunca aquele dia. Era 11 de setembro de 2016, a manhã estava nublada, havia previsão de chuva e turbulência. Subi no pequeno avião no aeroporto da cidade de Macapá, no Amapá, até a aldeia Bona, pertencente ao município de Almeirim, no Estado do Pará”, relembra o médico cubano Arnaldo Cedeño Núñez, que desde 2016 atendia as crianças indígenas da etnia Apalaí Waiana no Brasil.

“Não pude me despedir, fui embora e talvez dentro de 20 dias, em sua inocência, aguardem minha chegada, o que não vai acontecer, por isso lhes peço perdão”, lamenta o médico, que desde 2016 atendia as crianças indígenas da etnia Apalaí Waiana

O doutor Arnaldo vasculha sua memória, sinto que volta a viver aqueles momentos, para ele muito tensos. “Não nego que tinha medo, imagine que só viajaríamos eu e o piloto, o qual me deu instruções para alguma situação de emergência, porque cruzaríamos a selva amazônica até chegar à comunidade indígena da etnia Apalaí Waiana. O trajeto durava duas horas, era complicado e arriscado, só depois de algumas viagens é que comecei a apreciar a natureza bela e quase virgem que via das alturas.”

Conheci o jovem médico, oriundo da província de Granma, através das redes sociais logo em seguida ao comunicado do Ministério da Saúde Pública de Cuba de não continuar no programa Mais Médicos, quando Cedeño publicou em seu perfil no facebook um post: “Minhas crianças indígenas: saí sem me despedir de vocês. Não tinha ideia do que estava acontecendo. Ao chegar à cidade a notícia me surpreendeu. Não importa, a vida segue. Deus os abençoe e cuide muito! Que os encha de saúde e força para aceitar o futuro que se avizinha! Obrigado por compartilhar comigo mais uma foto. Perdão por não ter-lhes dito adeus!”

“Fui para a aldeia indígena no dia seguinte à eleição do presidente Bolsonaro. Durante dois anos, a cada vinte dias convivi com os nativos. Não havia luz elétrica nem telefone nem internet, só tínhamos um aparelho de TV no posto de saúde que funcionava duas ou três horas de noite enquanto houvesse combustível para alimentar o gerador, mas nestes dias a televisão estava quebrada e eu não sabia de nada do que estava acontecendo.”

“Com as crianças da comunidade eu tinha uma relação profunda, sempre levava caramelos, e eles em troca me ofereciam a pouca comida que tinham. Aprendi sobre sua cultura, suas brincadeiras, seus cantos, sua inocência, cheguei a chorar quando adoeciam e me doía que seu futuro estivesse restrito apenas à floresta e aos rios que lhes serviam de sustento.”

Arnaldo com crianças e mulheres da aldeia Bona

“Dois dias antes de deixar definitivamente o lugar quis descansar um pouco, coloquei a rede fora do posto de saúde e deitei. Na aldeia havia uma festa, foi então que chegaram umas crianças e pediram para que eu deixasse que elas cantassem umas canções em língua indígena para mim. Não me perdoo que não tenha gravado. Elas me salvaram neste dia de uma picada de cobra, porque descobriram que debaixo da rede havia uma pequena. Uma delas, quase descalça, a matou com sua sandália.”

Por uns segundos, o doutor Cedeño se mantém em silêncio. “Não sei por quê, tinha um pressentimento de que algo não ia bem, mas nunca pensei que não os veria novamente. Prometi passar o Natal com eles, é uma data importante para os brasileiros, não pude me despedir, e fui embora. Talvez dentro de 20 dias, em sua inocência, aguardem a minha chegada, o que não vai acontecer. Não pude dizer adeus e por isso lhes peço perdão.”

Quando chegava o avião, todos vinham com suas carinhas sorridentes a meu encontro. No princípio, me tocavam para sentir a textura da minha pele, que eles notavam que era diferente

“Levo deles as melhores lembranças. Por exemplo, quando chegava o avião, todos vinham com suas carinhas sorridentes a meu encontro. No princípio, me tocavam para sentir a textura da minha pele, que eles notavam que era diferente. Eram curiosos e me perguntavam de que etnia era o médico cubano, então eu lhes explicava que em Cuba não tínhamos caciques nem tribos. Um dia perguntaram sobre nossa comida e me comovi muito ao saber que só se alimentavam de tapioca, mandioca e frutas. Estão desnutridos, sobretudo os menorzinhos.”

Sinto emoção na voz do doutor Arnaldo. Ele faz uma pausa para me dizer por último:

“Eu lhes dei meu amor, ensinei-lhes a dançar e cantar e a entender nossa cultura. Minha única tristeza é não haver podido abraçá-los em minha despedida.”

 

 


(27) comentários Escrever comentário

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Cícero Rogério do Nascimento em 21/11/2018 - 17h32 comentou:

Emocionante! Espero que retorne algum dia à comunidade!

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Rosana em 21/11/2018 - 18h05 comentou:

Olá, Socialista Morena. Sou assídua leitora de seu sítio eletrônico. Gostaria que você deixasse seus textos preparados para serem compartilhados via WhatsApp, porque facilita muito a divulgação.

O que é bom merece ser compartilhado!!!

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Benedito Generoso da Costa em 21/11/2018 - 19h43 comentou:

Muito emocionante e bastante triste o depoimento do médico cubano. Triste, na verdade, é o fim da presença de médicos cubanos no programa “Mais Médicos” criado no Brasil pela primeira mulher presidente da república em nosso país, Dilma Rousseff.

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LUCIA MARIA VIEIRA DA ROCHA em 21/11/2018 - 20h21 comentou:

Obrigada por partilhar essa história, Cynara

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Ana Maria Minadeo de Moura em 21/11/2018 - 21h33 comentou:

Que pungente! Obrigada, doutor. Obrigada, Cynara pelo descrição do depoimento.
Me sinto muito pequena diante de tamanha grandiosidade.

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Luzia Moura em 21/11/2018 - 21h49 comentou:

Tão triste e estúpida essa ruptura, mais desamparo, menos cuidado, que as crianças sentirão tanta falta…..

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iara de moura paiva em 21/11/2018 - 22h36 comentou:

Enquanto a maioria dos médicos brasileiros, principalmente da rede pública, e alguns até particulares, atendem com ma vontade, sem nem olhar para o paciente, quanto mais examiná-lo ou investigar sua hereditariedade ou problemas precedentes, vemos os médicos cubanos cheios de humanidade e amor pelo próximo. BENDITOS SEJAM. E maldito o Boçalnaro, o filho de Belzebu que os expulsa do Brasil.

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Ney Scuoteguazza em 21/11/2018 - 22h53 comentou:

Comovente a despedida do médico… Triste o Brasil que nos espera … Parabéns ao doutor . Obrigado pela dedicação como médico e ser humano. Obrigado A Socialista Morena por nos informar das verdades deste país sofrido , mas que vai sobreviver a tudo isso …

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Tania Santos Caroso em 21/11/2018 - 23h51 comentou:

Não me conformo com tanto desalento! O Brasil rumo a total miséria de pobres e de povos indígenas que dependiam desses nos solidários irmãos que se foram.
Chorei e choro com relatos tão humanos porque é conheço a incrível relação entre um médico cubano e seus pacientes.
Meus agradecimentos, a pessoas que amaram de uma maneira especial o povo brasileiro, e nossas esternos gratidão.
Desculpe-nos pois não conseguimos salvar o Brasil!

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Josefa Neves Rodrigues em 22/11/2018 - 00h14 comentou:

Se já era grande admiradora do povo cubano, hoje sou fã. Respeito imensamente essa cultura de humanidade tão enfraquecida no povo brasileiro.
Eu amo Cuba!

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Lourdes em 22/11/2018 - 07h07 comentou:

Nossos agradecimentos e milhoes de desculpas a tofos os medicos cubanos pelas decisões e declaraçoes desastradas do psicopata e sua turma.

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Yelmo Papa em 22/11/2018 - 11h12 comentou:

Isso é uma prova de que os cubanos exercem o sacerdócio da Medicina. Não são mercantilistas como alguns dos nossos.

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Nilda macedo em 22/11/2018 - 11h14 comentou:

Gostaria que todo(a)s brasileiro(a)s tivesse a oportunidade de conhecer o Brasil por inteiro, talvez isso nos tornasse mais sensíveis aos problemas do nosso povo. O médico cubano trouxe tratamento às crianças indígenas e, acredito que levou consigo o carinho que recebeu e um pouco de conhecimento da cultura indígena. Acho que ele saiu do Brasil enriquecido apesar das arbitrariedades da política.

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Wilson em 22/11/2018 - 11h18 comentou:

Antes de comentar o relato do Dr. Arnaldo Cedeño Nùñez , queria agradecer-lhe primeiramente pela disposição , carinho e respeito para com os nossos.
O que senti em suas palavras , têem eco na letra da música ” Comida ” do grupo Titãs , a qual transcrevo :

Bebida é água
Comida é pasto
Você tem sede de quê?
Você tem fome de quê?

A gente não quer só comida
A gente quer comida, diversão e arte
A gente não quer só comida
A gente quer saída para qualquer parte

A gente não quer só comida
A gente quer bebida, diversão, balé
A gente não quer só comida
A gente quer a vida como a vida quer

A gente não quer só comer
A gente quer comer e quer fazer amor
A gente não quer só comer
A gente quer prazer pra aliviar a dor

A gente não quer só dinheiro
A gente quer dinheiro e felicidade
A gente não quer só dinheiro
A gente quer inteiro e não pela metade

Diversão e arte
Para qualquer parte
Diversão, balé
Como a vida quer
Desejo, necessidade, vontade
Necessidade, desejo, eh
Necessidade, vontade, eh
Necessidade

Espero terem entendido o que quis dizer na mensagem , porque eu entendi muito bem o que ele disse.

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Lílian Machado de Sá em 22/11/2018 - 11h59 comentou:

Obrigada, querido médico! Poucos médicos brasileiros merecem ser chamados assim.
Que Cuba te cubra de abraços, em nosso nome. Desculpe nossa estupidez!

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Rita Azzolin em 22/11/2018 - 12h43 comentou:

Olá. Fiquei muito comovida com o relato do médico cubano e sua relação com os indígenas. Lamento muito por estarmos vivendo sobre o poder desse governo facista, racista, homofobico e desumano. Muita crueldade como tudo aconteceu… Espero que tenhamos força para resistir e lutar O povo cubano é um exemplo para nós. Obrigada a esse valoroso médico e ser humano!

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Tiago de oliveira em 22/11/2018 - 14h29 comentou:

Muito triste !!!! Lamentável mais uma atuação desastrosa do fascista Bolsonaro, que compromete o futuro dessas pessoas que mais precisam.

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Pedro Antônio Lacerda em 22/11/2018 - 15h02 comentou:

Fiquei muito triste emocionado meu sentimento é de revolta e indignação total falta de respeito com o nosso pivo principalmente com quem veio para o nosso país trazer Amor e é respeito pela vida dos brasileiros aos médicos cubanos meus agradecimentos e solidariedade a vocês vão com desus um dia quem sabe vocês poderão retornar ao Brasil e serem respeitados abraço

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Ana Diaz em 22/11/2018 - 15h48 comentou:

Que triste el rompimento , mais com certeza ele irá ajudar a tantos que precisam lá em Cuba 🇨🇺

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Sergio em 23/11/2018 - 09h32 comentou:

Cynara, eu creio que 50.000 médicos (Por baixo) optaram conscientemente em escolhar Ferando Haddad para presidente, porque acreditaram que seria o início ou reinício de de um governo popular. Em favor da população mais pobre sobretudo.

Eu creio mais ainda que dentre desses 50.000, 15.000 teriam condições de substituir os médicos cubanos. Eu creio! Que sejam pessoas abnegadas à causa popular. Que querem devolver ao país, VIA POPULAÇÃO CARENTE, aquilo que foi investido!

Estranha-me essa reação de políticos e pensadores alinhados à esquerda! Por que não fazem um apelo a esses médicos. Ou… Não existem mais médicos de esquerda??? Ou não existe mais esquerda???

Era isso que a esquerda deveria se levantar! Isso sim é dar às mãos! Que lição de cidadania e que tapa sem mão daria se médicos com viés d esquerda se levantassem e se colocassem: “Nós iremos salvar à população mais pobre!”. Seria um renascimento e uma volta às bases!

esperava essa convocação de Boulus, Gleice Hoffmann, Ciro Gomes, Manuela Dávila, Haddad… Mas, o que fazem????

Perde-se o bonde da história! 🙁

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    Cynara Menezes em 23/11/2018 - 15h56 comentou:

    pirou, né, fio? a maior parte dos médicos votou em bolsonaro. as entidades médicas são todas bolsonaristas. o mourão foi convidado de honra do congresso brasileiro de neurocirurgia

ari em 23/11/2018 - 12h51 comentou:

Caso verídico
Problema no pé, muita dificuldade para andar
Passador de receita brasileiro: mal olhou para mim. Relatei o acontecido, mandou-me à enfermaria para raio x e uma injeção. Para que a injeção? perguntei ao enfermeiro. Para dor, respondeu. Detalhe: o “médico” não me perguntou se eu tinha dor
Médico cubano, mesmo problema dois anos depois
Entro na sala e, ao perceber minha dificuldade de andar, ele rapidamente levanta-se, vem até mim e, amparando-me pelo braço, conduz-me até a cadeira.
Moral da história: quem conheceu o foi atendido por um cubano treme só em pensar na volta dos curandeiros brasileiros. E o que é pior, serão substituídos – se forem – por garotos que mal largaram as fraldas

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Simone Cardoso em 23/11/2018 - 14h47 comentou:

Estou aos prantos lendo essa linda lição de humanidade, e me pergunto será que os médicos brasileiros irão atender essa tribo, e mais com tanto amor. Será que a desigualdade irá acabar? Pois sinto profunda tristeza pelas condições em que vivem essas, e outras crianças. Lamento muito, por tudo isso!

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Sergio em 27/11/2018 - 11h42 comentou:

Que a maioria deve ter votado no 17, é verdade. Porém, eu disse 15.000 médicos. Eu não disse todos! Vamos lá! Não temos 5.000 médicos que tenha votado em Haddad? Menos!

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    Cynara Menezes em 27/11/2018 - 18h25 comentou:

    hoje, infelizmente, a maioria dos médicos é de extrema-direita

Sergio em 29/11/2018 - 16h41 comentou:

Creio tb Cynara… Mas, os “poucos” que são de esquerda, por que não levantam as vozes?

Aliás… 97 das vaas foram preenchidas! Fake news?

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