Socialista Morena
Direitos Humanos

Morrer faz parte da vida, mas morrer baleado fazendo um café na cozinha é o quê?

No Brasil, morrer deixou de ser um ato isolado para virar um número frio, uma manchete óbvia, um fato corriqueiro

Eunice Veiga, que morreu de bala perdida quando estava na cozinha
Willian Novaes
16 de dezembro de 2020, 16h42

Morrer faz parte da vida. Morrer é o que sabemos que vai acontecer.

Para morrer precisamos viver. Sorrir, cantar, pular, dançar, comer, rezar, andar de moto e amar. Morrer é o final de cada um. Sem saída, sem fuga, sem escapatória, sem chance de dar um perdido.

Morrer na cozinha de casa fazendo um café é o quê? Morrer na esquina da sua rua com um tiro na cabeça quando você passava de moto? Morrer no quintal de casa, com uma bala que faz arder todo o seu corpo, e aê?

Não sofrer, não revidar, não se revoltar, mostra que você também já conta com uma boa parte do seu coração morto, sem fé, sem dor, sem sangue, também sem uma enfermidade, mas com a apatia cruel da normalidade

Barbárie, caos, inferno. Difícil responder tudo isso sem se indignar, sem machucar, sem chorar e sem sofrer. Morrer é o futuro, morrer no presente, ninguém merecia tal descaso, tal desprezo, tal fato.

O fim da vida é o começo do sofrimento de alguém, de um pai, de uma mãe, de um vizinho, de uma amiga. Todos os dias morremos juntos com o genocídio de nosso povo, preto, pobre, periférico, brasileiro.

Morrer deixou de ser um ato isolado para virar recordes de estatísticas, tristezas, um número frio, uma manchete óbvia, um fato corriqueiro.

Não sofrer, não revidar, não se revoltar, mostra que você também já conta com uma boa parte do seu coração morto, sem fé, sem dor, sem sangue, também sem uma enfermidade, mas com a apatia cruel da normalidade que tanto vemos do lado de fora das nossas casas.

Willian Novaes é jornalista e escritor


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