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Direitos Humanos

O comandante nazi gay que acabou fuzilado e o tenista bi que Hitler tentou cooptar

Docudrama Cabaré Eldorado retrata a liberdade da cena queer de Berlim nos anos 1920 e 1930 –até os nazistas adotarem a pauta moral como estratégia de poder

Ernst Röhm em cena do filme Cabaré Eldorado. Foto: reprodução Netflix
Cynara Menezes
25 de setembro de 2023, 16h05

Em cartaz na Netflix, o docudrama alemão Cabaré Eldorado: O Alvo dos Nazistas, de Benjamin Cantu, vai surpreender muita gente que acha que as questões de gênero surgiram agora. Está tudo ali, 100 anos atrás, na boate que dá nome ao filme e também nas ruas de Berlim nos anos 1920 e 1930: transexuais, bissexuais, homossexuais, lésbicas… Não há nada de novo sob o sol, nem mesmo a opressão sobre estas pessoas que virá com o nazismo. Presume-se que entre 10 e 15 mil homossexuais tenham sido enviados a campos de concentração.

A liberdade da cena queer da capital alemã antes de Adolf Hitler era tão grande que até mesmo um alto comandante nazista gay frequentava o Cabaré Eldorado. Ernst Röhm era o braço direito do führer e é apontado como um dos principais responsáveis pela ascensão do nazismo. Embora não escancarada, a homossexualidade dele era fato conhecido em Berlim. A imprensa publicava cartuns sobre sua vida privada e revelou cartas onde Röhm assumia ser “orientado para o mesmo sexo”.

Cartum sobre Röhm publicado pelo Münchener Post em 1931

No começo, Hitler tolerava a homossexualidade de Röhm e fazia ouvidos moucos aos rumores sobre a broderadagem entre os rapazes das SA (Sturmabteilung ou “Tropas de Assalto”, a milícia paramilitar do nazismo), que ele liderava. Hitler e Röhm eram tão íntimos que o comandante era um dos poucos oficiais, senão o único, a tratar o líder nazista pelo prenome du (você), por “Adolf” e até pelo apelido “Adi”, a ponto de surgirem rumores –nunca comprovados– de que o próprio Hitler fosse homossexual. 

Hitler e Röhm em agosto de 1933. Foto: bundesarchiv

Logo, porém, os nazistas adotariam a pauta moral como estratégia de poder e a homofobia como instrumento de manipulação das massas ao instigar pânico moral –alguém aí lembrou do bolsonarismo? Os homossexuais passam então a ser apontados como “depravados”, “anormais”, são caçados, presos, mortos ou enviados a campos de concentração. Lá, são submetidos a torturas, abuso sexual, castração e experimentos médicos macabros.

O fato de Röhm ser homossexual encaixava perfeitamente na trama urdida por seu rival Heinrich Himmler, chefe das SS (Schutzstaffel, a Polícia do Estado), para livrar-se dele: Himmler e Hermann Göring, líder do Partido Nazista, convencem o paranoico Hitler de que Röhm conspirava para dar um golpe, destituí-lo do poder e assumir seu lugar. Hitler autoriza então a eliminação do antigo braço direito por “traição”.

No começo, Hitler tolerava a homossexualidade de Röhm e os rumores sobre a broderadagem em suas tropas. Logo, porém, os nazistas adotariam a pauta moral e a homofobia como instrumento de manipulação ao instigar pânico moral –alguém lembrou do bolsonarismo?

As tropas da SS vão encontrar o comandante das SA na cama de um quarto do aprazível Hanselbauer Hotel, nas cercanias de Munique. Preso, Röhm recebe uma pistola Browning e o ultimato: ou se mata ou será fuzilado. Ele se recusou a dar cabo da própria vida. “Se é para eu ser morto, que seja pelo próprio Adolf”, teria dito. Foi fuzilado ali mesmo, na cela, por dois oficiais da SS. A desculpa para o fuzilamento foi sua homossexualidade.

Com o tenista Gottfried von Cramm a atitude de Hitler foi oposta: mesmo sabendo que o número 1 do mundo em 1937 era bissexual, o líder nazista tentou cooptá-lo para utilizar sua imagem para a propaganda do regime. Aristocrático, loiro, campeão de tênis, Gottfried era visto pelo hitlerismo como o atleta ideal para encarnar o símbolo da “raça ariana” diante do mundo, sem importar como levava sua vida privada.

O tenista Gottfried von Cramm no Aberto da Austrália em 1937. Foto: wikimedia commons

Habitué do Cabaré Eldorado, o barão von Cramm era casado com Lisa von Dobeneck, também de linhagem nobre, mas mantinha, com consentimento da mulher, um romance com o jovem ator e cantor judeu Manasse Herbst. Quando começam as perseguições aos judeus, em 1936, Gottfried ajuda Manasse a escapar da Alemanha.

Assediado continuamente por Göring, o tenista se nega a colaborar com os nazistas. Recusa-se a fazer o Sieg Heil antes dos jogos ou a citar o führer em seus pronunciamentos públicos nas turnês internacionais. Só após rejeitar a aliança com os nazistas é que sua sexualidade diversa é utilizada contra ele; em 1938, Gottfried é preso, acusado justamente pela relação homossexual com Manasse e de financiar sua fuga. Libertado seis meses depois devido à indignação que sua prisão gerou, é obrigado pelos nazistas a lutar na guerra entre 1940 e 1942.

Mesmo sabendo que o número 1 do tênis mundial era bissexual, Hitler tentou cooptar Gottfried von Cramm para utilizá-lo na propaganda do regime. Só após rejeitar a aliança com os nazistas é que sua sexualidade diversa é utilizada contra ele, e em 1938 Gottfried é preso

O mais triste é que o tenista sobreviveu ao front de batalha, mas continuou a ser vítima, no pós-guerra, do infame artigo 175 do código penal alemão, vigente desde 1871. O artigo, que penalizava “os atos sexuais contra a natureza (…), sejam entre homens de sexo masculino ou entre homens e animais”, foi piorado pelos nazistas em 1935 com um parágrafo que punia os “transgressores” com penas de um até 10 anos de trabalhos forçados, e só foi revogado em 1994.

A “ficha suja” impediu que Gottfried von Cramm pudesse competir em vários torneios internacionais importantes, como o de Wimbledon; após o término do conflito, ele chegou a recorrer à corte alemã para que a prisão fosse excluída de sua ficha, mas a petição foi negada. Ele volta a competir em Wimbledon apenas em 1951, quando já estava com 42 anos.

A manutenção do artigo 175 na íntegra pela Alemanha Ocidental –a Alemanha Oriental suprimiu o parágrafo agravante adicionado pelos nazistas– levou à prisão de pelo menos 100 mil homossexuais entre 1945 e 1969, e à condenação de 50 mil por homossexualidade. Estas pessoas só obtiveram o perdão oficial do governo alemão, por incrível que pareça, em 2017 –ou seja, mais de 70 anos depois do fim da guerra.

“A reabilitação dos homens que foram levados ante os tribunais por sua homossexualidade deveria ter sido feita há muito tempo”, declarou na época o ministro da Justiça, Heiko Maas. “Foram perseguidos, castigados e desonrados pelo Estado alemão apenas por seu amor por outros homens. Os homossexuais condenados não têm de sofrer mais este estigma, que, em muitos casos, destruiu sua trajetória profissional e sua vida.”

 

 


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