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O neomacarthismo da The Economist

Em crise, o centro político se apropria do discurso que levou a extrema direita a galgar espaços de poder no mundo

A foice e o martelo de Andy Warhol, 1976
Cynara Menezes
13 de setembro de 2021, 21h43

No início de setembro, a revista britânica The Economist exibiu em reportagem de capa (na verdade um editorial) os “defeitos” que vê na “esquerda iliberal”, como denomina a parcela da esquerda que defende o chamado “identitarismo” ou que permanece fiel ao marxismo e aos ideais revolucionários. Com ataques frontais sobretudo ao movimento antirracista nos EUA, a “bíblia” do pensamento neoliberal aderiu ao neomacarthismo que anima a extrema direita no mundo.

No texto intitulado A Ameaça da Esquerda Iliberal, a revista, desde 2015 controlada pela família Agnelli (da Fiat, uma das apoiadoras de Benito Mussolini), estabelece qual a esquerda que pode ser “aceita” hoje: a que não menciona as lutas de classe, racial e de gênero; a que não aponta problemas estruturais, sistêmicos, na sociedade e no capitalismo; a que aceita estas contradições de forma pacífica, submissa, sem reagir a elas “violentamente”. Ou seja: a esquerda “consentida” pela Economist é praticamente uma direita.

A capa da Economist

As acusações feitas pela Economist parecem ter saído da pena de um Olavo de Carvalho. Os inimigos a combater estão nas escolas e universidades, “doutrinadas” pelo pensamento marxista graças ao filósofo alemão naturalizado norte-americano Herbert Marcuse (1898-1979) e ao educador brasileiro Paulo Freire (1921-1997). Sim, a fama de Freire como “má influência” para alunos e professores chegou até lá. O cerne do artigo é mostrar que a esquerda é autoritária.

O uso do termo “iliberal” como oposição a “liberal” em vez de “ditatorial” é um calculado e estratégico eufemismo: os “liberais” também denominam “democracia iliberal” regimes autoritários como o de Viktor Orbán na Hungria; ou o de Bolsonaro no Brasil. Nicolás Maduro, no entanto, continua a ser chamado de “ditador” da Venezuela, embora existam eleições no país.

A “bíblia” neoliberal estabelece qual esquerda pode ser “aceita” hoje: a que ignora as lutas de classe, racial e gênero; a que aceita, submissa, as contradições sistêmicas do capitalismo. A esquerda “consentida” pela Economist é praticamente uma direita

“Muitos alunos se agarraram a um corpo teórico que une textos obscurantistas a apelos à ação social (ou ‘práxis’) que vêm se desenvolvendo na academia há décadas. Em 1965, Herbert Marcuse, um teórico crítico, cunhou a frase ‘tolerância repressiva’, a noção de que a liberdade de expressão poderia ser retirada da direita para que possamos progredir, já que o ‘cancelamento do credo liberal da discussão livre e igualitária’ pode ser necessário para acabar com a opressão”, diz a revista sobre o texto Tolerância Repressiva de Marcuse, cujo objetivo nunca foi calar vozes dissonantes e sim calar… o fascismo, à maneira do que havia feito Karl Popper 20 anos antes com o Paradoxo da Tolerância. O artigo de Marcuse é considerado inclusive uma resposta ao paradoxo proposto por Popper.

Pintar a esquerda como “autoritária”, como faziam os macarthistas nos anos 1950 e como fazem os extremistas de direita na atualidade, ao que tudo indica se tornou uma ação coordenada globalmente também entre a direita dita liberal. No Brasil, ataques ao mesmo texto de Marcuse podem ser encontrados tanto em sites de extrema direita quanto em jornais autodenominados “liberais” como o Estadão. Como Marcuse tornou os estudantes de hoje mais intolerantes que seus pais, publicou o vetusto matutino paulista em 2017, tradução do artigo da estadunidense April Kelly Woessner, que joga sobre as costas do filósofo a responsabilidade sobre a disseminação das lutas identitárias e não à desigualdade gerada pelo capitalismo.

O quadro pintado pela revista da vida acadêmica nos EUA é em tudo similar ao modo como o ministro da Educação de Bolsonaro, Milton Ribeiro, enxerga as universidades: um lugar dominado pelo pensamento de esquerda onde quem ousa discordar é calado à força

Outra influência nefasta apontada pela Economist sobre os professores  e estudantes das “escolas de elite” e universidades dos EUA é a de Paulo Freire, “um educador brasileiro cuja Pedagogia do Oprimido (publicada em inglês em 1970) defendia uma pedagogia libertadora no espírito da Revolução Cultural de Mao, na qual ‘os oprimidos desvendam o mundo da opressão e através da práxis se comprometem para a sua transformação'”. Steve Bannon não diria melhor.

O quadro pintado pela revista da vida acadêmica é em tudo similar ao modo como o ministro da Educação de Bolsonaro, Milton Ribeiro, enxerga as universidades: um lugar dominado pelo pensamento de esquerda onde quem ousa discordar é calado à força. “Uma pesquisa feita pela Knight Foundation entre 4 mil estudantes universitários em 2019 apontou que 68% deles não podiam dizer o que pensavam porque seus colegas achariam ofensivo”, afirma o artigo. 

O principal alvo do proselitismo em forma de jornalismo é o “identitarismo”, de gênero e raça. “Não subestime o perigo da política identitária de esquerda”, adverte, já no subtítulo. Um dos textos de apoio abre com uma zombaria ao uso de pronomes neutros (exatamente como fazem os bolsonaristas no Brasil) e ataca diretamente dois intelectuais antirracistas: Ibram X. Kendi, negro, por afirmar que o capitalismo é “essencialmente racista”; e Robin DiAngelo, branca, por denunciar o racismo no dia a dia do norte-americano branco, até mesmo entre os progressistas. Não podemos esquecer que um dos principais alvos do macarthismo foi a luta dos trabalhadores negros norte-americanos por igualdade racial, esmagada no período.

O escritor Ibram X. Kendi, um dos alvos da Economist

Novamente, a Economist lança mão de pesquisas para disseminar a tese da “guerra cultural” e da “divisão” que teria sido “implantada” na sociedade pelas esquerdas (a quem reserva termos datados como “bolchevismo”, adjetivado como um “câncer” equiparável ao fascismo), ao tentar “impor a igualdade” no país. Como se antes de movimentos como o Black Lives Matter surgirem os EUA fossem o paraíso da convivência entre classes, gêneros e raças. Ku Klux Klan? Isso nunca existiu, gente.

“Uma década atrás, 40% dos liberais brancos concordavam que a principal razão pela qual os negros não ascendem era a discriminação racial; hoje são mais de 70%”, diz a revista, lamentando que não permaneça o número de quase 60% de brancos que culpavam os negros pela própria situação. Dizer o contrário é “vitimismo”, claro.

Fonte: The Economist

Esta ideia de que o direitista está sendo “oprimido” pela esquerda talvez seja a mais significativa das distopias implantadas pela extrema direita no mundo hoje, e é ecoada com gosto pela The Economist. “A ameaça mais perigosa à pátria espiritual do liberalismo vem da direita trumpista. O ataque vindo da esquerda é mais difícil de engolir, em parte porque nos EUA ‘liberal’ inclui uma esquerda iliberal”, lamenta.

Em democracias sólidas, há espaço para todos no espectro político. Quando um dos lados é demonizado, a democracia deixou de existir, morreu. Em crise de identidade, o centro político representado pela direita “liberal” busca se aproximar do discurso que levou a extrema direita a galgar os espaços de poder no mundo. Mas para onde este “extremo centro” vai nos levar? 

Ao longo da história já vimos como isso termina, e não serão os “oprimidos” da direita, liberal ou extrema, que serão perseguidos, perderão seus empregos, irão para a cadeia, serão torturados ou mortos.


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(2) comentários Escrever comentário

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Mauricio em 14/09/2021 - 00h35 comentou:

O anti-identitarismo é Tb plataforma do PCO. Seria interessante confrontar os argumentos de “The Economist” com aqueles da esquerda revolucionária trotskista.

Responder

Silvio Carlos Nobre em 14/09/2021 - 11h42 comentou:

É a elite branca pedindo através de sua revista o direito de ser racista, misógina e homofóbica livremente e se puder voltar a escravidão melhor ainda… Bando de escroto!

Responder

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