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“Ponto G”, a fake news que prejudica o prazer da mulher há 4 décadas

As revistas femininas ajudaram a disseminar a mentira de que há uma zona erógena dentro da vagina –o que só trouxe felicidade aos homens

Ilustração publicada pela Cosmopolitan em 2020. Foto: reprodução
Cynara Menezes
20 de março de 2023, 16h19

Em maio de 2020, a revista feminina norte-americana Cosmopolitan pediu desculpas às suas leitoras por disseminar uma fake news que vem prejudicando o prazer das mulheres há quatro décadas: a existência do “ponto G”, uma zona erógena que supostamente as levaria ao “orgasmo vaginal” e ao nirvana sexual. “Então…”, começa a revista, “você acredita em uma completa mentira a respeito do seu próprio corpo. E nós… somos parcialmente culpadas por isso. Nos desculpem. E nós queremos que você saiba: o ponto G não existe.”

Desde o início dos anos 1980, a Cosmopolitan (e muitas outras revistas, mas sobretudo a Cosmo) vinha fazendo reportagens de capa do tipo “Como achar o seu ponto G”“O localizador Cosmo do ponto G” ou “Ponto G: onde fica?” onde iludia suas leitoras com dicas de posições sexuais para fazê-las encontrar a tal área. Depois do desmentido, textos como esses podem ainda ser encontrados online, mas com o seguinte aviso: “Hey! A matéria que você vai ler foi publicada antes de nossa investigação de abril de 2020 sobre o ponto G. A verdade é: ele não existe. Saiba mais aqui”.

Criada em 1886, mas circulando regularmente como revista feminina nos EUA a partir de 1965, a Cosmopolitan é uma das publicações que mais se notabilizaram por falar abertamente de sexo (heterossexual) com mulheres. Sempre, porém, sob a ótica do patriarcado, com a intenção declarada de que é preciso satisfazer o macho e assim impedir que ele busque aventuras fora de casa. Aqui, a revista se chamou Nova entre 1973 e 2015 e passou a ser Cosmopolitan Brasil até 2018, quando foi “descontinuada” –eufemismo dos patrões da mídia para dizer que uma publicação fechou.

Para a Cosmopolitan,e muitas outras revistas femininas, o “ponto G” era uma espécie de Cálice Sagrado: uma vez localizado, a mulher poderia enfim se sentir realizada sexualmente. Mas, para os sexólogos italianos Vincenzo e Giulia Puppo, buscar o “ponto G” é o equivalente sexual de procurar o continente perdido de Atlântida

A exemplo da matriz norte-americana, um tipo de matéria bem típica da Nova era essa, publicada em maio de 2005: “Por que os homens adoram sexo oral?” Homens são entrevistados para dar dicas às mulheres de como elas podem levar ELES ao clímax: “Fernando, de 30 anos, dá sua receita: ‘Gosto que a coisa aconteça quase artisticamente. E mais: sem uma atenção especial aos testículos, o sexo oral não é realmente bom'”; “Não quer engolir o sêmen? Tudo bem. Mas nada de correr para lavar a boca no banheiro”; “Imite um polvo! Use as mãos e os pés para acariciá-lo em diferentes áreas do corpo ao mesmo tempo”. Oi?

Para a Cosmopolitan, o “ponto G” era uma espécie de Cálice Sagrado: uma vez localizado, a mulher poderia enfim se sentir realizada sexualmente. Mas, para os sexólogos Vincenzo Puppo e Giulia Puppo, do Centro Italiano de Sexologia da Universidade de Florença, num estudo publicado em 2014 no jornal Clinical Anatomy, buscar o “ponto G” é o equivalente sexual de tentar encontrar o continente perdido de Atlântida.

O suposto ponto G

“Em todas as mulheres, o orgasmo é possível se os órgãos eréteis femininos são efetivamente estimulados durante a masturbação, sexo oral, masturbação feita pelo parceiro ou durante a penetração vaginal/anal se o clitóris for estimulado”, afirma a dupla de pesquisadores italianos. “Ponto G”, “ejaculação feminina”, “orgasmo vaginal”, garantem, não passam de lendas urbanas.

É muito sintomático que a origem do “ponto G” seja masculina. Ele se chama assim em homenagem a um homem, o ginecologista alemão Ernest Gräfenberg, que primeiro o teria localizado, entre a abertura vaginal e o canal da uretra, por volta de 1940. Mas, justiça seja feita, quem disseminou essa “descoberta” a partir de 1981 foi uma mulher, a sexóloga estadunidense Beverly Whipple. Foi ela, junto com um time de pesquisadores, quem cunhou o termo.

A quem interessa a existência de um “ponto G”? “Se você tem um pênis, seria superconveniente se o jeito que as pessoas que possuem uma vagina obtenham prazer seja com você colocando seu pênis dentro das vaginas delas”, diz a sexóloga Emily Nagoski. Hum…

“O ponto G parece um pequeno caroço ou um feijão esponjoso. A estimulação faz com que ele inche e aumente de diâmetro do tamanho de uma moeda de dez centavos para, em algumas mulheres, o tamanho de meio dólar. Quando o ponto de Grafenberg é tocado pela primeira vez, muitas mulheres afirmam que sentem como se tivessem que urinar, mesmo que tenham acabado de esvaziar a bexiga. No entanto, dentro de 2 a 10 segundos após a massagem, a reação inicial é substituída em algumas mulheres por uma forte e distinta sensação de prazer sexual”, publicou Wipple em 2012.

Mais recentemente, cobrada pela Cosmopolitan, a sexóloga justificou que a história do ponto G saiu de controle, que não falou que ele existe em todas as mulheres e negou até mesmo que o ponto seja um ponto. “Apesar dessa analogia com o feijão, os pesquisadores não queriam dizer que era um ponto. Eles estavam falando sobre uma ‘área’ que poderia simplesmente fazer algumas mulheres se sentirem bem. Mas a mídia (oi de novo!) preferiu a versão limpa e arrumada e a utilizou como uma panaceia sexual”, diz a revista.

A quem interessava, afinal, a existência de um “ponto G” dentro da vagina? Ora, chegar ao orgasmo “tocando o ponto G” requer penetração, o que por coincidência é o jeito que a maioria dos caras prefere gozar. Como disse a sexóloga Emily Nagoski, autora de Come as You Are, à Cosmopolitan: “Se você tem um pênis, seria superconveniente se o jeito que as pessoas que possuem uma vagina obtenham prazer seja com você colocando seu pênis dentro das vaginas delas”. Hum…

Freud desprezava os orgasmos clitorianos como “fenômeno adolescente” em relação aos “orgasmos vaginais”, mais “maduros”. Mas a maioria das mulheres nunca teve um orgasmo vaginal porque tampouco ele existe, é invenção tão machista quanto a “inveja do pênis”

Enquanto os homens se divertiam à vontade “buscando o ponto G” com seus pintos, para as mulheres esta procura por algo inexistente virou razão de muita ansiedade e frustração. Segundo a própria revista em seu mea culpa, nada menos que 11% das mulheres passaram a evitar o sexo por não encontrar o “ponto G”. Por causa de uma mentira que beneficia os homens, durante todo este tempo as mulheres perderam tempo com uma bobagem, quando poderiam estar explorando melhor o órgão que comprovadamente lhe dá prazer, e que fica do lado de fora do canal vaginal, o clitóris.

Ou seja, os homens acharam uma maneira de interferir até mesmo na maneira que as mulheres chegam ao orgasmo, e não estamos falando de preliminares. Lá atrás, outro homem, Sigmund Freud, desprezava os orgasmos clitorianos como um “fenômeno adolescente” em relação aos “orgasmos vaginais”, que seriam considerados “maduros”. E, no entanto, múltiplos estudos demonstram que a maioria das mulheres nunca experimentou um orgasmo vaginal porque tampouco ele existe, não passa de uma elucubração do “pai da psicanálise”, tão machista quanto a teoria de que mulheres possuem “inveja do pênis”.

Para tentar mitigar o estrago que causou à sexualidade feminina, a Cosmopolitan prometeu que, a menos que aconteça alguma revelação bombástica envolvendo o tema, não publicará mais reportagens sobre as “posições sexuais ideais para achar o ponto G” ou “guias” sobre como encontrá-lo. No entanto, em julho do ano passado, a revista publicou um mix de informe publicitário e reportagem onde aponta os “16 Melhores Vibradores do Ponto G”, onde “explica” que, embora tal área seja “um mito”, isto não significa que todos os brinquedinhos vendidos como “vibradores do ponto G” sejam falsos porque a “estimulação interna ainda é muito legal”. Ah, bom!

Na verdade, trata-se de uma estratégia para que tais vibradores tenham alguma sobrevida no mercado, já que foram suplantados pelos “sugadores” de clitóris, que fazem o maior sucesso atualmente entre a mulherada que não acredita em contos da carochinha sexuais –e que sabe percorrer a rota do próprio prazer sem precisar de guias fake.

 


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