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Pandemia de coronavírus vai mudar nosso modelo de consumo, inclusive na moda

Esta é a aposta da Fashion Revolution, que prega trabalho digno e respeito ao meio ambiente na indústria de roupas

Iara Vidal
27 de março de 2020, 13h59

A pandemia de Covid-19 vai mudar o nosso modelo de vida e o jeito de consumir, inclusive na moda. A previsão foi feita por Li Edelkoort, uma das especialistas em previsão de tendências de comportamento mais reconhecidas do mundo, em entrevista ao site Dezeen, onde falou sobre esse momento tão delicado que estamos vivenciando. A designer holandesa analisou que o vírus vem causando uma “quarentena de consumo” e terá um profundo impacto cultural e econômico. Afinal, as pessoas precisarão se acostumar a viver com menos posses e a viajar menos, pois as cadeias globais de fornecimento e redes de transporte estão interrompidas.

Li também acredita que essa pode ser uma grande oportunidade para questionar como direcionamos nossas vidas. Em meio ao caos instalado mundo afora, rotinas foram mudadas com o isolamento social e o teletrabalho, cancelamento de eventos e de projetos. O modo de vida capitalista está estacionado. É hora de olhar para dentro e entender quais serão as novas formas de produzir e consumir e como será a nossa relação com o planeta.

A moda é um ícone do tempo. Por meio do que vestimos é possível, por exemplo, narrar a história do capitalismo. Desde o primeiro giro da Revolução Industrial, quando abandonamos o modo artesanal de fazer roupas, graças ao carvão como energia e ao tear como modo mecânico de produção; passando pelo segundo, com a energia elétrica e a máquina de costura; o terceiro, com o salto da indústria química pós-Segunda Guerra Mundial, que trouxe o poliéster e o nylon. No quarto giro, agora, os algoritmos, a automação, a internet das coisas e a obsolescência da mão de obra humana dão o empurrão da moda para a Era do Conhecimento.

Nesses tempos de coronavírus, a moda também é emblemática. A crise planetária revelou práticas do setor que deixam bem claro que é o lucro acima de tudo e de todos, inclusive da saúde de trabalhadores e trabalhadoras. Como, por exemplo, o escritório da Riachuelo em São Paulo, que recebeu graves denúncias ao obrigar funcionários e funcionárias a trabalhar, apesar dos casos confirmados de Covid-19 na própria empresa. Como revelou matéria publicada pelo Intercept Brasil. Dentre as pessoas expostas havia gestantes e idosos, que se enquadram nos grupos de risco.

Em meio ao caos instalado, rotinas foram mudadas com o isolamento social e o teletrabalho. O modo de vida capitalista está estacionado. É hora de olhar para dentro e entender as novas formas de produzir e consumir e como será nossa relação com o planeta

A moda é também um caleidoscópio: comportamento, identidade, opressão, liberdade, gênero, religião, etnia, idade, saberes, nacionalidade, proteção, vulnerabilidade e luta de classes. Nossas roupas contam histórias, são cerzidas em afetos e dores e podem ganhar significados que vão além de cobrir e proteger nossos corpos. Apesar disso, você já parou para pensar como é feita a roupa que veste? Quem fez? Como foi o cultivo da fibra? Como trabalhadoras e trabalhadores e agricultoras e agricultores são tratados? Quais e quantos recursos naturais foram usados? Como é a destinação dessas peças quando descartadas?

Essas são questões levantadas pelo movimento Fashion Revolution. A iniciativa global, presente em mais de 100 países, procura incentivar maior transparência, sustentabilidade e ética na indústria da moda por meio da conscientização, mobilização e educação. Foi criado após o desabamento criminoso do prédio Rana Plaza, em Daka, Bangladesh, que abrigava confecções de roupas e, no dia 24 de abril de 2013, deixou mais de 1.100 mortos e 2.500 feridos. E não foi por falta de aviso. Havia rachaduras pela estrutura do local e as autoridades e responsáveis não fizeram nada. Nos escombros da tragédia foram localizadas etiquetas de diversas marcas, inclusive globais. Dessa tragédia fruto da usura do Capital surgiu o movimento Fashion Revolution, para dizer: basta! Hoje, ao redor do mundo, são desenvolvidas ações mobilizadoras para incentivar as pessoas a questionarem a indústria da moda.

Desde que foi criado, em 2014, o movimento Fashion Revolution realiza a Semana Fashion Revolution, com atividades na semana do dia 24 de abril. Este ano, será de 20 a 26 de abril. No Brasil, mais de 80 faculdades, 51 cidades de 19 estados e o Distrito Federal vão realizar atividades – todas online, em virtude da pandemia de coronavírus– para debater a futura indústria da moda, que respeita as pessoas e o planeta com trabalho justo e decente, proteção ambiental e igualdade de gênero.

Em Brasília, onde represento o Fashion Revolution desde 2018, o foco das nossas atividades nesses três anos tem sido o encontro entre moda e política. Aí você pode até perguntar: o que moda tem a ver com política? Tudo. Só será possível melhorar a forma como as roupas são produzidas, compradas, cuidadas e descartadas se o poder público e os governos promoverem mudanças estruturais para uma indústria da moda responsável, transparente, justa e sustentável. Como alcançar esses objetivos diante da hecatombe obscurantista instalada no País?

Como atuar por uma indústria que promova trabalho digno e justo diante de uma agenda de retrocessos de direitos e garantias de trabalhadoras e trabalhadores, inclusive da cadeia produtiva da moda? Como enfrentar o trabalho análogo à escravidão com o fim do Ministério do Trabalho, ameaças à Justiça do Trabalho e o esvaziamento da Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae)?

Há 6 anos ocorre a Semana Fashion Revolution, com atividades na semana do dia 24 de abril. Este ano, será de 20 a 26 de abril, mas todas serão online em virtude da pandemia. No Brasil, mais de 80 faculdades, 51 cidades de 19 estados e o DF vão participar

Como garantir a representatividade na moda das populações negra, indígena, quilombola e LGBTQI+ em um cenário de heteronormatividade tóxica? Como promover a equidade de gênero em um contexto antifeminista e misógino, em que as mulheres são silenciadas nos espaços de poder? Como promover a produção agroecológica de algodão frente à liberação acelerada de agrotóxicos ー muitos deles banidos em países desenvolvidos? Como falar em respeito ao meio ambiente ao assistir ao desmonte dos órgãos de proteção ambiental, negacionismo do aquecimento global e seus efeitos devastadores e até mesmo a proposta de extinção das reservas de proteção ambiental nas propriedades rurais? Como fomentar pesquisa, ciência e tecnologia aplicadas à moda diante de um governo que repudia o debate democrático e visões de mundo diferentes e promove um corte catastrófico nas verbas de universidades públicas e a perseguição a cientistas e professores?

Não se deixe enganar. Não existe moda sustentável. Em um sistema capitalista é impossível garantir uma produção sustentável. Pode até ser que haja atributos sustentáveis na produção de determinada peça. No máximo. Fique de olho também na prática usual do Capital de sequestrar temas como feminismo, veganismo e sustentabilidade para atingir o que realmente importa: o lucro. Tem até nome para essa prática: greenwashing, uma tendência alienante e que desvia o foco do que realmente importa: as pessoas. Tem marcas, por exemplo, que produzem mais de 60 toneladas de resíduos têxteis por mês, destinam duas toneladas para reciclagem, e batem o bumbo nas redes sociais alardeando que são boazinhas e se importam com o meio ambiente. Mesmo? Acho que não, hein?

Em tempos de desmonte de direitos, a resposta da moda pode ser estimular o debate sobre as suas relações com a política. Afinal, não é mais possível viver em um mundo onde roupas destroem o meio ambiente, prejudicam ou exploram as pessoas e reforçam as desigualdades de gênero. Este não é um modelo de negócios sustentável. A indústria da moda deve medir o sucesso além das vendas e lucros e valorizar igualmente o crescimento financeiro, o bem-estar humano e a sustentabilidade ambiental. É urgente uma indústria de moda transparente e que se responsabilize pelas suas práticas e impactos sociais e ambientais.

A moda precisa ser resistência desses tempos obscuros e, para isso, precisa de aliados. Pergunte: #QuemFezMinhasRoupas? #DoQueSãoFeitasMinhasRoupas?

Iara Vidal é jornalista, consultora na área de consumo e representante da Fashion Revolution em Brasília

Mais informações:

facebook.com/fashionrevolution.brasil

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instagram.com/fash_rev_brasil

 


(3) comentários Escrever comentário

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Marie Abreu em 28/03/2020 - 20h22 comentou:

Moda e RESISTÊNCIA, feita c transparência do início ao final dos processos, me parece um sonho de uma sociedade mais justa e bela.

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Estrela em 29/03/2020 - 11h55 comentou:

Por favor assim que puder, se puder, nos diga as marcas que devemos evitar.

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pedro+de+A.+Figueira em 30/03/2020 - 19h36 comentou:

Os problemas do trabalhador estão a exigir o fim das classes sociais. A existência de trabalhadores enquanto classe é algo que perdeu sua razão de ser. Benjamin Franklin, em meados do século dezoito, afirmava que se todo mundo trabalhasse bastariam apenas 4 horas diárias de trabalho para que todo mundo vivesse bem. Se comparadas com as atuais, as máquinas que então começavam a fazer parte do mundo da produção eram instrumentos toscos.

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