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A obsessão macabra dos militares (e de Bolsonaro) pelo cadáver de D. Pedro I

Governo quer reeditar a patacoada ufanista de 1972 ao importar o coração do imperador para as comemorações do Bicentenário da Independência

O coração de D. Pedro I, conservado em formol até hoje. Foto: Venerável Irmandade Ordem da Lapa
Joana Monteleone
12 de maio de 2022, 16h20

Uma imagem tétrica circula pela internet em 2022: um recipiente transparente guardando um coração que Bolsonaro quer trazer de Portugal para celebrar a independência do Brasil. Parece bizarro, mas é só mais um episódio de necrofilia dos militares brasileiros, que parecem ter uma tara especial pelo cadáver de D. Pedro I, o dono do coração que ficou em Portugal, separado, 50 anos atrás, por milhares de quilômetros de seus demais restos mortais.

Em 1972, o corpo insepulto de D. Pedro I foi a grande estrela do maior velório de que se tem notícia no Brasil. O país vivia sob o governo do general Emílio Garrastazu Médici, e, pelo menos na aparência, parecia passar por um momento de prosperidade. A economia ainda não dava sinais de que tinha pés de barro, o preço da gasolina e do custo de vida eram relativamente estáveis, a classe média se esbaldava em itens de consumo de massa, os jornais, irrigados pela propaganda oficial, não tinham vergonha de exaltar “feitos grandiosos” do governo –que avançava na destruição da Amazônia e praticava a tortura de dissidentes quase à luz do dia.

A obsessão com o cadáver de D. Pedro I é bastante reveladora da necropolítica da ditadura militar, mas sua retomada em 2022 mostra que, além de retomar a velha tara pelo imperador garanhão, o governo Bolsonaro também revela que é totalmente sem imaginação

O Brasil havia ganho a Copa do Mundo no México em 1970, com Pelé e um supertime. A Rede Globo fabricava otimismo, mas alguns temas eram proibidos: democracia era palavrão, não se podia votar para presidente, os oposicionistas mais “radicais” do partido da oposição consentida eram cassados quando atrapalhavam qualquer projeto mal explicado do governo, a censura se institucionalizava e notícia ruim era coisa proibida.

Na onda ufanista que mandava os descontentes deixar o país (“Brasil, ame-o ou deixe-o” era o “Vai pra Cuba” de antanho), e querendo repetir a experiência da Copa do Mundo, a ditadura militar chefiada por Médici decidiu comemorar os 150 anos de Independência do Brasil, ocorrida em 1822. Fazia todo o sentido na cabeça dos militares, que também desejavam celebrar os oito anos em que davam as ordens no país, desde o golpe em 1964. A ideia era organizar um “festão de integração nacional” em 1972. Nessa época, a ditadura tinha ilusões de eternidade, pois as vozes relevantes que discordavam do governo eram brutalmente silenciadas, torturadas ou mortas pelas forças da repressão.

A ideia por trás das comemorações do Sesquicentenário da Independência era aparentemente simples –exaltar o próprio governo–, mas escondia o cerne da ideologia militar. A “narrativa”, como se diz hoje, era a seguinte: 1) os militares estiveram presentes desde a formação do país, em 1822, durante o processo de Independência; 2) os militares proclamaram a República, 1889; 3) os militares fundaram uma nova era e impediram o advento do comunismo no Brasil em 1964. Eles seriam, portanto, o esteio da nação, a força motora do país e também a garantia de estabilidade.

Em 1972, o cortejo macabro pelo país, com o corpo de d. Pedro I peregrinando num caixão fechado, incluía paradas com estudantes e professores convocados compulsoriamente, velórios, missas, passeatas e desfiles militares. Ao lado  vinha a propaganda das “realizações” da ditadura

Ainda assim, era preciso associar os militares à nobreza imperial dos Orleans e Bragança, portanto, ao próprio D. Pedro I. Garantida essa ideia, os militares também teriam, como “nobres”, “direito legítimo” às benesses do Estado –aliás, não foram poucas as vantagens econômicas para empresas e figuras militares durante a ditadura. Pensões, roubos, mamatas, viagens, mordomias eram fatos corriqueiros do governo militar, que reprimia qualquer menção ou crítica.

Para que essa fantasia se consolidasse, era preciso, portanto, reviver os símbolos imperiais. E importar de Portugal o corpo de D. Pedro I para ser enterrado num mausoléu às margens do rio Ipiranga, perto dos jardins do museu, em São Paulo, foi a forma de trazer “a história” para o programa de legitimação do regime ditatorial. O cadáver de D. Pedro I estava em Portugal, onde aliás ele é D. Pedro IV, mas algo ajudava na ideia mirabolante.

Portugal também era governado por uma ditadura, a ditadura salazarista, neste momento sob a direção do jurista Marcelo Caetano, presidente do Conselho de Ministros, sucessor de António de Oliveira Salazar, que comandara o país por décadas e que morrera em julho de 1970, após um período sem exercer o poder por conta de um AVC. A ditadura portuguesa cedeu o corpo de D. Pedro I para um cortejo que percorreu, durante o ano de 1972, o Brasil inteiro antes de chegar a São Paulo. Mas Portugal, emotivo, ficou com o coração do imperador…

O cortejo macabro pelo país, com os restos mortais de d. Pedro I peregrinando num caixão fechado, incluía paradas com estudantes e professores convocados compulsoriamente, velórios, missas, passeatas e desfiles militares nas grandes cidades de todo o país. Ao lado do desfile fúnebre vinha a propaganda das realizações do governo –a ambiental e socialmente desastrosa construção da Transmazômica, da ponte Rio-Niterói, do metrô de São Paulo.

As comemorações também eram “culturais”. Nas escolas, aulas especiais foram criadas para que os alunos identificassem no exército a instituição salvadora e redentora da nação. No cinema, foi lançado o filme Independência ou morte!, com Tarcísio Meira e Glória Menezes. Na televisão, a Rede Globo exibiu um musical especial, com diversos cantores como Roberto Carlos e Elis Regina, promovendo sucessos ufanistas como o  Hino do Sesquicentenário, composto especialmente por Miguel Gustavo Werneck de Souza Martins, autores também da música oficial da Copa de 1970, Pra frente Brasil.

Durante o Sesquicentenário, o IHGB (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro), que foi bastante atuante durante o Império, voltou a ter relevância intelectual, lançando uma coleção de livros sobre o século 19 e promovendo encontros com intelectuais. Médici autorizou e acelerou as obras da nova sede do instituto, e a nova sede do IHGB foi inaugurada com a presença de Médici (que teve uma sala nomeada em sua homenagem) no dia 5 de setembro de 1972.

Cartaz do filme Independência ou Morte!, de 1972

Na cerimônia, estavam presentes, além do ditador e presidente, o ministro das Relações Exteriores, Mário Gibson Barbosa, o chefe do Gabinete Militar, João Baptista Figueiredo, o chefe da Casa Civil, João Leitão de Abreu, o governador da Guanabara, Chagas Freitas, a escritora Rachel de Queiroz, o presidente do IHGB, Pedro Calmon, que deu um medalhão de ouro ao presidente Médici.

A obsessão com um cadáver, no caso D. Pedro I, é bastante reveladora da necropolítica da ditadura militar, que perseguiu opositores, negros, indígenas, camponeses, homossexuais e quem quer que escapasse da ideia de “normalidade”. Mas sua retomada em 2022, nessa cogitação amalucada de trazer o coração de D. Pedro I mostra que, além de retomar a velha obsessão pelo imperador garanhão, o governo Bolsonaro estimula não apenas a herança que beira a necrofilia, mas também revela que é um governo totalmente sem imaginação.

Primeiro militar a governar o Brasil depois da ditadura, e se tudo correr bem, também o último, Bolsonaro quer reviver os anos de chumbo sem inventar, pôr ou tirar nada. Por trás dessa simples notícia, que de inocente nada tem, esconde-se mais uma vez as antigas ideias de os militares são os salvadores da pátria e de que, por isso, têm direitos especiais a mordomias, supersalários e proteção generalizada da imprensa e da Justiça.

Se em 1972 o enterro macabro de d. Pedro I foi também uma tentativa de esconder as mortes e a tortura, agora, em 2022, a volta do coração do monarca tenta esconder nova onda de morticínio, provocada pela gestão desastrosa da pandemia de Covid 19, pela destruição da natureza na Amazônia e, cada vez mais, pela fome.

Joana Monteleone é pós-doutoranda da Universidade de São Paulo (USP/SP) e autora de Sabores Urbanos: Alimentação, Sociabilidade e Consumo (Alameda casa Editorial, 2015) e Toda Comida Tem Uma História (Oficina Raquel, 2017). Em 2014, dirigiu o mini-documentário O Corpo do Imperador, sobre as comemorações do Sesquicentenário da Independência


(1) comentário Escrever comentário

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Bernardo Santos Melo em 14/05/2022 - 08h22 comentou:

Desvendado nesta semana toda anatomia de mais uma tentativa de GOLPE contra nossa ainda resiliente democracia , mais uma vez concebido pelos militares sobreviventes do gabinete militar do antigo General Silvio Frota ( deposto por Geisel ) , contudo não é hora de baixarmos a guarda , a proximidade das eleições onde A DERROTA nas URNAS aparece como fatal ao grupo FAMILICIANO ,óbvio concluirmos que muitas escaramuças ainda ocorrerão .
O coração de Pedro , mesmo que venha ao Brasil e seja recebido com MOTOCIATA NAZISTA não rejuvenescerá O VERME , falta a existência do SR TRUMP à frente da casa pálida .
Os oito mil reservistas lubrificados por duplos salários já entraram no curral , serão conduzidos por um corredor com destino AO BRETE e posterior abate .
Democracia SIM , barbárie NÃO !

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