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Chico entendeu as feministas; os antifeministas é que não entenderam Chico

A decisão do compositor de não cantar mais “Com Açúcar, Com Afeto” causou alvoroço não pela defesa da arte ou da liberdade, mas por cutucar o machismo

Chico Buarque e Nara Leão em "Quando o Carnaval Chegar", de 1972. Foto: divulgação
Lili Martins
09 de fevereiro de 2022, 15h11

Com Açúcar, Com Afeto foi escrita por Chico Buarque em 1966 sob encomenda de sua amiga Nara Leão, que queria uma canção de “mulher sofrida”. A letra, que relata a vida de uma mulher submissa a um homem sem caráter, foi rejeitada pelo próprio compositor no documentário O Canto Livre de Nara Leão, de Renato Terra. Chico afirmou que não vai interpretá-la mais –embora ela já não figure há décadas em suas apresentações ao vivo– por concordar com as críticas feitas por feministas à canção.

Em suas primeiras declarações, o cantor contou que algumas mulheres reclamaram do tom extremamente machista da letra e que, por isso, ele tomou a decisão de deixar de interpretá-la (como aconteceu com o grupo mexicano Café Tacvba em relação à canção La Ingrata), acrescentando que as feministas tinham razão. E foi aí que saíram a público todos os “defensores da arte e da liberdade” para opinarem sobre a polêmica decisão. E todos traziam uma conclusão em comum: Chico tinha sido atacado, intimidado e até censurado pelas “feministas”.

Ninguém imaginou que Chico Buarque tivesse compreendido as feministas, que as críticas fizeram com que ele refletisse sobre nossas causas, e que, finalmente, essa canção também tenha passado a incomodá-lo como incomoda a nós, mulheres feministas?

Ora, estamos falando de uma das figuras artísticas mais queridas do Brasil; então, para estes seus admiradores, Chico teria sido vítima ao se “autocensurar” ou gênio ao se “autocancelar” para não alimentar a polêmica e encerrar o “assunto chato” das feministas.

Foi um alvoroço, no qual o que mais tinha era homem criticando a decisão do compositor e atacando o movimento feminista. Sem o menor respeito pelo lugar de fala que exige o tema “machismo na sociedade”, homens cisgêneros, formados em Artes, Comunicação, Filosofia e outras áreas, escreveram sobre a polêmica com o olhar padrão do macho branco burguês, que se resume em: “o radicalismo do oprimido quer acabar com a liberdade do opressor”. Juntaram-se a eles algumas mulheres com tanta formação acadêmica quanto para fazer coro nas análises sociais sobre o impacto sempre negativo desse tipo de decisão: censura, perda de uma obra de arte, submissão a um movimento radical…

Claro que todo o julgamento sobre o “movimento feminista” –baseados em alguns comentários de mulheres que haviam criticado o machismo da dita canção– acabou dando forças justamente a esse machismo. Era só dar uma lida nos comentários de todas as matérias, editoriais ou publicações nas redes sociais sobre a polêmica; todos repletos de palminhas e piadas misóginas.

“Elas (as feministas) não conhecem Mulheres de Atenas”, repetia o comentário mais frequente. “Precisa explicar para elas que se trata de um retrato artístico, de um poema”, dizia outro, sempre depreciando a capacidade cognitiva das mulheres –sendo que somos nós, as feministas, que estamos cansadas de explicar o tempo todo que não queremos mais essa representação machista da mulher submissa, que normaliza o machismo, tornando-o algo até mesmo romântico. Queremos, sim, acabar com essa cultura dominada pela sociedade patriarcal e suas representações machistas para dar lugar a retratos de um mundo mais igualitário, com mais mulheres empoderadas.

Chico parece que entendeu o recado, mas por “que será que será” que ninguém enxergou um mínimo de empatia na sua decisão? Ninguém imaginou que ele tivesse compreendido as feministas, que as críticas fizeram com que ele refletisse sobre nossas causas, e que, finalmente, essa canção também tenha passado a incomodá-lo como incomoda a nós, mulheres feministas? Algum acadêmico escreveu sob esse ponto de vista, mesmo depois de ele ter reafirmado esse incômodo em sua última declaração sobre a polêmica dizendo não ter mais vontade de cantar a dita canção? Não. Nenhum. Por que será?

Porque o imaginário das pessoas enxerga o movimento feminista como algo radical, assim como qualquer movimento social que busca a igualdade entre os seres humanos. E sobretudo porque, quando alguém como o Chico, que ocupa um lugar social entre os opressores, se curva a uma reclamação do oprimido, as estruturas que sustentam a sociedade desigual se abalam.

Chico: “Nunca tive conhecimento de que os movimentos feministas criticavam essa música. Não foi por isso que eu deixei de cantar a canção. Para mim, essa música é meio datada. O único feminista que criticou essa música fui eu”

O próprio cantor explicou, em entrevista à jornalista Regina Zappa no Brasil 247: “Criaram essa celeuma de que estou cancelando, me autocensurando, vetando. Tenha paciência. Não tenho nada a ver com isso. Deixar de cantar não é proibir, nem cancelar”, disse. “Nunca tive conhecimento de que os movimentos feministas criticavam essa música. Não foi por isso que eu deixei de cantar a canção. Para mim, essa música é meio datada. O único feminista que criticou essa música fui eu.”

Chico Buarque de Holanda não é nenhum coitadinho, vítima do “radicalismo do movimento feminista”, nem um gênio que quis evitar o debate cansativo das “feminazis”. Chico é um homem de esquerda, cheio de empatia. Chico é corajoso e lúcido como poucos, porque é preciso coragem para enfrentar essas estruturas. Chico é coisa rara e mais raras ainda estão ficando as pessoas que compreendem o Chico.

 


(2) comentários Escrever comentário

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Adriano de Leon em 11/02/2022 - 10h02 comentou:

Erro crasso de Chico e destas feministas: anacronismo. O perigo de atos desta natureza é tornarmos a História plana, escondendo suas rugas. Na literatura, na música, nas artes em geral há paradigmas e produções que hoje consideramos equivocadas. Mas que bom que elas existam como registro. Agora, parte do feminismo equivocado, usa os mesmos mecanismos de queima de livros e censura que seus principais inimigos fizeram. Menos, né? Parte da esquerda está muito comprometida com estes balangandãs identitários. A ideia coletiva se foi. Agora a luta é por um indivíduo e seu suposto lugar de fala: uma mulher pobre preta lésbica solteira nordestina descapacitada e louca. Ah, para: não concordo, pois sou mulher mulher pobre preta solteira nordestina descapacitada e louca, mas sou não binária! Que pena! Mas na minha casa ainda posso ouvir Com Açúcar, com Afeta, antes que minha vizinha identitária me ferre na assembleia do condomínio.

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Ademar Amâncio em 04/03/2022 - 17h45 comentou:

Quando ele cantava a música,ele era a própria mulher,não há nada mais anti-machista do que essa canção.

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