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Como a indústria alimentícia se aproveitou da liberação feminina para vender comida lixo

Tem uma série documental imperdível no Netflix, Cooked, baseada no livro Cozinhar – Uma História Natural da Transformação, do jornalista e escritor Michael Pollan. Pollan, também narrador da série, é uma espécie de ativista da arte de comer bem preparando sua própria comida. Dividida em quatro episódios (Fogo, Água, Ar e Terra), Cooked defende a tese […]

Cynara Menezes
27 de setembro de 2016, 17h40
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(Salvadores de esposas)

Tem uma série documental imperdível no Netflix, Cooked, baseada no livro Cozinhar – Uma História Natural da Transformação, do jornalista e escritor Michael Pollan. Pollan, também narrador da série, é uma espécie de ativista da arte de comer bem preparando sua própria comida. Dividida em quatro episódios (Fogo, Água, Ar e Terra), Cooked defende a tese de que nosso processo civilizatório não começou com a descoberta do fogo e sim quando passamos a cozinhar os alimentos e deixamos de comer tudo cru.

Cooked começa mostrando os hábitos alimentares do povo australiano Martu para exemplificar como as mudanças nas dietas originais ocasionaram doenças nos seres humanos. Os aborígenes foram obrigados a deixar suas terras na década de 1960 e só puderem retornar, depois de muita luta, a partir de 2002. Durante o período em que permaneceram fora, tomando refrigerantes, comendo a comida “dos brancos” e ingerindo doses cavalares de açúcar, que não conheciam, desenvolveram diabetes, pressão alta e obesidade. Foi só voltarem à antiga dieta que os indicadores se normalizaram.

O mais interessante: Pollan conta como a indústria alimentícia se aproveitou da liberação feminina nos anos 1960 e 1970 para vender comida processada e junk food. O exemplo primordial é a rede de frango frito KFC (Kentucky Fried Chicken), tão famosa pela forma cruel como cria os animais que ganhou o apelido de Kentucky Fried Cruelty. A KFC enxergou na falta de tempo da mulher que ia para o mercado de trabalho uma chance de multiplicar as vendas de sua comida ruim e explorou o tema em diversos anúncios a partir do mote da libertação da mulher.

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(Faça desta noite o Dia das Mães)

Segundo Pollan, a decisão da mulher emancipada de retornar ao mercado de trabalho (já havia feito isso antes, é bom lembrar, durante a Segunda Guerra) gera uma disputa doméstica entre o casal sobre como seria a divisão das tarefas domésticas e o cuidado com os filhos.

Mas, em vez de resolver esta disputa, as famílias ouviram os “conselhos” da indústria e passaram simplesmente a comprar comida enlatada ou recorrer aos serviços de entrega em domicílio de fast food. O mais absurdo é que, utilizando campanhas de propaganda, a indústria convenceu as famílias que a comida feita em casa não era saborosa como a que se comprava pronta! Com isso, a boa e velha comida caseira foi substituída por comida lixo, cheia de “ingredientes” que você não tem na dispensa: aromatizantes, espessantes, conservantes… E os norte-americanos disseram adeus ao momento sagrado da refeição em família, a não ser nos feriados.

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(Ele dará a você um descanso da correria)

“Nós meio que assumimos que, como as mulheres voltaram ao trabalho, não haveria mais tempo para fazer a refeição familiar. Mas não é tão simples, é mais interessante. As grandes corporações estiveram batendo naquela porta por quase 100 anos. E após a Segunda Guerra, quando eles tinham inventado todas estas tecnologias para processar a comida e simular comida de verdade com comida fake, era chegada a hora de empurrar e entrar. Eles acharam a oportunidade que queriam com a revolução feminista nos anos 1970. Havia realmente um papo desconfortável tomando lugar nas mesas das cozinhas de toda a América. Homens e mulheres estavam tentando renegociar a divisão do trabalho doméstico. E a indústria alimentícia viu ali uma oportunidade. Eles disseram: ‘não se preocupe, nós te cobriremos. Nós vamos cozinhar’. A KFC inclusive fez um outdoor enorme com uma cesta de frango frito e o slogan: ‘Women’s Liberation'”, disse Pollan à rádio pública norte-americana NPR.

Não se pode dizer que no Brasil tenha sido diferente, só que aconteceu mais tarde, com a invasão do McDonald’s e das redes de pizzaria e de comida em domicílio que hoje tem até um “aplicativo” para facilitar a vida de quem se recusa a preparar a própria comida. O que Pollan propõe é que voltemos às cozinhas para terminar aquela conversa, o marido, a mulher e os filhos, para ver como podemos dividir as tarefas de casa e voltar a fazer nossas refeições, como forma de viver mais e melhor. “Eu acho que a coisa mais importante que nós podemos ensinar a nossas crianças para a sua saúde e felicidade a longo prazo é como cozinhar”, prega.

Certamente os machistas dirão: “Ora, então é culpa do feminismo que estejamos obesos!” Não, é culpa do machismo que os homens até hoje não tenham sido capazes de dividir as tarefas de casa com suas companheiras. Quem disse que cozinhar tem que ser a obrigação feminina na divisão das tarefas? É uma questão de lógica: se redividíssemos o trabalho doméstico entre todos, todos estaríamos comendo melhor. E comer bem não significa abrir mão de nenhum alimento, mas comer a menor quantidade de comida industrializada possível, enfrentando o poderoso lobby em favor dela.

Em abril do ano passado, o lobby da indústria alimentícia se juntou aos ruralistas e conseguiu aprovar na Câmara um projeto retirando dos produtos transgênicos o “T” que os identifica (rejeitado pela Comissão de Ciência e Tecnologia do Senado, o projeto atualmente está em análise pela Comissão de Agricultura). Imaginem, não só somos obrigados a comer transgênicos como eles querem que não saibamos disso! Para quem acha que vemos conspiração em tudo, a coisa é mundial: nos EUA, um projeto idêntico foi sancionado por Barack Obama em agosto deste ano.

Sabe-se que o governo golpista de Michel Temer também está querendo fazer com que as pessoas trabalhem até 12 horas por dia, como já acontece no país que inspira a direita no Brasil (mas só no que há de pior por lá). Fazer os brasileiros trabalharem mais horas, passando assim mais tempo fora de casa, não é um belo truque para que comprem mais e mais comida pronta? A indústria alimentícia será eternamente grata.

 

 


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