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Como pão quente: livro com proposta de nova Constituição vira best-seller no Chile

Desde que foi lançada, proposta da nova Carta está no topo da lista dos mais vendidos em não-ficção; plebiscito acontecerá em setembro

Camelô vendendo a proposta da nova Constituição em Santiago. Foto: Paulina Cabeza/The Clinic
The Clinic
09 de agosto de 2022, 17h40

Por Amanda Marton Ramaciotti, no The Clinic
Tradução Cynara Menezes

Um fenômeno único está acontecendo no Chile: um esboço de uma lei está na lista dos livros mais vendidos de não-ficção. Está em todas partes, em seu formato original ou pirateado. A proposta da nova Constituição chilena, independentemente de qual seja o resultado do plebiscito do próximo dia 4 de setembro, já é histórica, pelo menos em termos editoriais. Aqui, escritores, especialistas em Direito e em linguística analisam o texto como um best-seller.

O sucesso de um texto jurídico ainda não aprovado, um esboço, é inédito. O interessante é que, ainda que já seja best-seller, um livro cult, um pão quente, um novo Harry Potter, seus autores não terão a última palavra e sim todos os leitores chilenos

Estamos lendo-a! Em formatos grandes e pequenos; em casa, com conhecidos e desconhecidos. No metrô, vendedores ambulantes apregoam-na por menos de 5 mil pesos (cerca de 28 reais). Nas calçadas há algumas versões piratas sendo vendidas a 3 mil pesos (17 reais). Nas vitrines das livrarias, nas redes sociais, onde quer que alguém circule no mundo físico ou digital, lá está ela: a proposta de uma nova Constituição é o livro do momento no Chile.

A proposta de 178 páginas aparece no segundo lugar em não-ficção entre os livros mais lidos no país desde que foi lançada (chegou a ocupar o primeiro posto), de acordo com a lista de best-sellers do jornal El Mercurio. Sua edição oficial mais econômica, da LOM Ediciones (3.500 pesos, ou 20 reais), vendeu 1 mil exemplares na mesma tarde do dia 4 de julho, horas depois de sua versão final ter sido apresentada pela Assembleia Constituinte, no Congresso Nacional.

Logo em seguida fizeram 7 reimpressões: de 2 mil; 7 mil; 2 mil; 7 mil; 7 mil; 10 mil e 20 mil exemplares respectivamente, só nessa editora, onde um total de 70 mil exemplares foram vendidos até agora. Nas demais que publicaram a proposta da nova Constituição, algo similar ocorreu.

Lista dos mais vendidos: Constituição no topo

“O livro está datado de 4 de julho de 2022 e esta data coincide com a data do texto. Talvez cumprindo o sonho editorial de qualquer manuscrito, este de imediato se converteu em livro impresso, como por arte de uma magia da urgência e da necessidade extrema: a divulgação de uma coleção de 11 capitulos, 388 artigos e 57 disposições transitórias que, se for aprovada no plebiscito de 4 de setembro, limitará o exercício do poder e consagrará nossos direitos fundamentais”, diz Bernardita Eltit, Doutora em Literatura da Universidad de Chile.

Quer se aprove ou não a proposta da nova Constituição chilena, o certo é que ela já se converteu num sucesso de vendas. Um êxito do qual participaram 154 “escritores” e cujo público objetivo são nada menos que as mais de 17 milhões de pessoas que vivem no Chile (além dos fãs que acompanham o processo no estrangeiro).

“Trata-se de um fenômeno que não ocorria desde Harry Potter, que era vendido massivamente tanto nas livrarias quanto nas ruas”, disse ao The Clinic Juan Cristóbal Peña, escritor, jornalista e diretor do mestrado em Escrita Narrativa da Universidad Alberto Hurtado. O autor de títulos como Cecilia. La vida en llamas e Los fusileros inclusive escreveu um artigo para a Revista Anfíbia, da Argentina, com o título de A Constituição, um best-seller para a História”.

Em sua opinião, a proposta da nova Constituição “está saindo como pão quente, se tornou um objeto de culto para guardar porque representa um movimento, a demanda pela nova Carta e a discussão desse processo histórico no qual o Chile se encontra”.

“Trata-se de um fenômeno que não ocorria desde Harry Potter, que era vendido massivamente tanto nas livrarias quanto nas ruas”, diz o escritor Juan Cristóbal Pena. A nova Constituição está saindo como pão quente nos camelôs de Santiago

O professor também lembra que há três anos, nos dias posteriores às manifestações, a Constituição que todavia está sob vigência no Chile também se tornou um dos livros mais vendidos. “Este é um fenômeno no qual, para tornar possíveis mudanças sociais, entendemos que era necessário estudar a Carta Magna. Portanto, é perfeitamente coerente que o resultado da Constituinte seja um texto que gere não só interesse por seu conteúdo, senão que também tenha um valor simbólico como material, uma espécie de fetiche.”

***

Pensada como um livro, a nova Constituição oferece a seus leitores uma experiência paradigmática de leitura, opina Amanda Olivares Valencia, advogada e professora de Direito e Literatura na Universidad de Talca. Recordando Julio Cortázar, a professora diz que aquilo que lemos também vivemos e que, enquanto vivência, “a leitura transforma nossa relação com o mundo e com os outros. Esta transformação, pensada e vivida em grande escala, coletivamente, é o que nos oferece a nova Constituição”.

Segundo a especialista, o Direito está constantemente exercitando este poder gerador e transformador que tem a língua. “Cada aplicação de uma norma põe em jogo este poder de transformação. Mas no caso de um texto constitucional a novidade é que a trama que a linguagem oferece é ainda maior. Tratam-se não só de novas palavras, que a Constituição que rege atualmente nossa vida política não contém e pela mesma razão oblitera, senão também de novos escritores e leitores que passam à leitura de um texto que antes figurava só nas estantes dos advogados.”

Ainda que os textos legais tendem a ter um público mais especializado –basta pensar nas livrarias jurídicas e nos que a visitam– é bem verdade que no Chile se tornou tradição pelo menos facilitar esse tipo de conteúdo a todos. Tanto a Constituição vigente como o Código Civil e outras normas são vendidas nas bancas, ao alcance de todos. Isto se deve, entre outras razões, a que cada um dos processos políticos na história recente do Chile tem sido mediado por uma busca da ordem baseada na palavra escrita.

O presidente Gabriel Boric com o livro

“A menos de  duas semanas de concretizado o golpe de Estado contra Salvador Allende, se criou a Comissão Ortúzar para elaborar uma nova Constituição que substituísse a Carta de 1925. Uma vez redigido o projeto de texto constitucional, este é submetido a um plebiscito fraudulento no dia 11 de setembro de 1980. Depois, com o propósito de determinar se Pinochet continuava no poder ou não, a sociedade chilena foi convocada a votar no plebiscito de 5 de outubro de 1988 e logo foi novamente chamada a se pronunciar sobre as reformas constitucionais que introduziram modificações na Carta de 1980. E há dois anos as palavras ‘plebiscito’ e ‘texto constitucional’ voltaram a circular entre nós”, enumera Camilo Arancibia, fundador do Seminário de Arte e Direito, advogado e professor de Direito Civil e Direito e Literatura na Universidad de Valparaíso.

“Acho que há aí uma necessidade de legitimar as mudanças políticas mediante a publicação de um texto que –inclusive de maneira fraudulenta como em 1980– busca ser aceito pelos cidadãos. Como se a origem violenta de um processo não fosse o suficiente para legitimá-lo, mas fosse necessário um texto que lhe conferisse validade”, comenta. “É interessante como a partir de plebiscitos nós, chilenos, conversamos indiretamente sobre o rumo da sociedade. Trata-se de um diálogo silencioso, pacífico, mas nem por isso menos apaixonado e profundo. Me parece algo muito próprio de nossa democracia e é algo (a necessidade dos textos, a busca de acordos, o diálogo pacífico) do qual devíamos nos sentir orgulhosos”, acrescenta.

Ao longo da história é difícil encontrar outros textos legais que tenham tido tamanho sucesso de vendas, principalmente antes de serem aprovados. Talvez o exemplo mais próximo do que está ocorrendo no Chile seja o Código Civil francês de Napoleão Bonaparte

Soledad Chávez Fajardo, professora do Departamento de Lingüística da Universidad de Chile, e membra da Academia Chilena de la Lengua (eleita), vai em outra direção. Em sua opinião, ainda que no Chile exista o costume da validação do que está escrito, como aponta Arancibia, o interesse de uma comunidade por consumir um texto de caráter legal que ainda não foi aprovado, que é uma proposta, um esboço, é algo praticamente inédito.

“Eu só poderia comentar um exemplo similar na história, não só no Chile mas na língua espanhola em geral: o esboço da gramática da Língua Espanhola que publicou a Real Academia Espanhola en 1973”, afirma. Enquanto não se publicava uma gramática, o esboço era comprado, se consumia, se consultava e se estudava entre os alunos de Filologia, Letras, Linguística e Pedagogia, até que chegou a nova gramática, em 2009. “Imagine: 1973-2009 é o único exemplo que posso dar e de alguma maneira mostrar como equivalente ao que está acontecendo com a proposta de texto da nova Constituição. Do ponto de vista da lógica cultural, dos movimentos culturais, isso faz deste livro algo relevantíssimo”, defende Soledad Chávez Fajardo.

Ao longo da História é difícil encontrar outros textos jurídicos que tenham tido tamanho sucesso de vendas, principalmente antes de serem aprovados. Talvez o exemplo mais próximo do que está ocorrendo no Chile seja o Código Civil francês de Napoleão Bonaparte. Sua ideia, dizem os especialistas, é que os franceses o tivessem junto com a Bíblia na mesa de cabeceira da cama.

Este livro foi vendido pelo menos entre os que sabiam ler. Mas, como o índice de analfabetismo era alto, ainda que tenha sido um êxito de vendas, não se compara ao caso do livro constitucional chileno.

***

O mercado pirata que há por trás da proposta da nova Constituição provavelmente seja a melhor maneira de captar oportunamente a demanda que há para acessar e consumir o texto. Joaquín Trujillo, especialista em Direito e Literatura e pesquisador do Centro de Estudos Públicos, tem um exemplo em suas mãos: uma edição pirata comprada na rua que diz ser o projeto normatizado, mas que não é real, porque o texto final foi entregue um mês depois que ele obteve o exemplar.

“Esse projeto falso dizendo que é normatizado estava sendo vendido há dois meses. Não sei se fazem isso com má intenção ou não, mas é a demonstração de que o livro da proposta da nova Constituição faz parte de um fenômeno de supervendas. Como todo fenômeno editorial, há de tudo: há gente que vende o verdadeiro, há gente que vende algo falso, ou uma edição anterior, é uma mistura”, afirma.

Isso ocorreu apesar de a Constituinte ter tomado suas precauções. Como relata Juan Cristóbal Peña, na edição definitiva da proposta da nova Carta foi usada uma tipografia única, criada especialmente por encomenda da Comissão de Comunicação e que buscava ter uma marca própria e personalidade única, que impedisse ser copiada ou suplantada. A letra foi batizada Convenção FJ, em alusão a seu criador, o designer Franco Jonás.

Como todo conteúdo que mais de uma pessoa consome, claro que este livro é altamente discutido. Em fóruns, eventos, redes sociais, em família, com amigos, nos meios. Há muitos argumentos entre os que gostam e os que não gostam. Para além de seu conteúdo, os especialistas comentam sobre a linguagem e a existência de algumas palavras.

“Há pessoas que se chateiam porque dentro da proposta da nova Constituição há conceitos não jurídicos, mas a Constituição é o lugar para que estejam os conceitos não jurídicos. Não há nada de mal nisso, porque a Constituição é o que há de mais parecido a uma premissa poética de uma sociedade”, opina Joaquín Trujillo.

A letra criada para a nova Carta

O professor explica que na história da humanidade foram feitas constituições poéticas, como a Carta Magna italiana feita pelo escritor Gabriele D’Annunzio nos anos 1920. De forma similar, a Constituição estadunidense foi estudada como uma obra poética. Por quê? Porque, dentro dos textos legais, a Constituição é o texto mais político, mais filosófico, mais religioso –em certo sentido–, o mais romântico de todos. Em resumo: tem todos os conceitos que estão na fronteira do Direito e, portanto, tende a acumular conceitos que não são propriamente jurídicos”.

Por outro lado, dada a pulsão que existe por reivindicar certos direitos, Camilo Arancibia opina que dificilmente este livro teria poucas palavras ou seria curto. “Um dos argumentos para defender a proposta é que diz tal coisa ou enuncia tal direito que a Constituição atual não regularia, como se pelo simples fato de que a Constituição não diga este direito não estivesse protegido hoje (por exemplo, regulado em outro texto de menor hierarquia). Isso é mostra de uma forte cultura legalista na América Latina que afirma que para que algo valha deve estar apontado em uma lei”, sustenta.

Como bem dizia o escritor e advogado mexicano Carlos Fuentes, “a tradição legalista romana é um dos componente mais sólidos da cultura latino-americana. De Cortés a Zapata, só cremos no que está escrito e codificado”.

***

Se todos os livros cumprem um papel em nosso imaginário enquanto sociedade, com a proposta de nova Constituição não é diferente.

“Creio que a boa literatura consegue, entre outras coisas, capturar algo do tempo que vivemos e nos põe frente a frente a isso para que, autonomamente, decidamos se corresponde ao que fomos, somos ou queremos chegar a ser. Nos põe diante de nós uma imagem que, se é acertada, se incorporará a nosso imaginário social, a essa forma de nos aproximarmos do mundo e de viver com outros. No caso dos textos legais, eles cumprem uma função similar, que busca elucidar que norma hoje pode se adaptar melhor aos tempos que vivemos”, diz Camilo Arancibia.

Bernardita Eltit concorda: “Toda lei é um artefato literário, tanto quanto palavra quanto verdade. O livro que por estes dias trazemos nas mãos, o livro no qual pousamos nosso olhar e às vezes o lápis, que comentamos com familiares, amigos e ferozes detratores, do qual escutamos fragmentos reais ou inventados em programas televisivos, noticiários e podcasts, carrega o poder da literatura em cada uma de suas letras, o poder radical e até revolucionário de propor uma mudança de rota, um curso novo construído a partir de milhões de passos dados em cada marcha, em cada manifestação. Um outro mundo possível, como na melhor literatura.”

O interessante é que, ainda que este livro em particular já seja um best-seller, um livro cult, um pão caliente, um fetiche, um novo Harry Potter, seus autores não terão a última palavra e sim todos nós, os leitores.

 


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Bernardo Melo em 10/08/2022 - 05h45 comentou:

O sonho tem a força !
Pena q existam seres trevásticos e poderosos , poderosos e/ou bestias, quantas Micheques 89 existem para poluir nosso planeta ?
Quantos Brunos & Dons ainda serão executados ?
Acredito q o Rock Rio , nos fará cantar em uníssono , e desta multidão gritando alto colocaremos o nosso povo decidido a excluir nas urnas a grande corja nefasta q tanto turva nosso futuro .
Até lá , Anittas – Tatás – Família Passos- Cynaras e nossos sonhos vão tomando o espectro simbólico nacional .
Haja lenha na fogueira e sonhos .
A convocação da carta democrática abrirá o caminho das ruas , Ciro Gomes tem o dever de colocar a gota final da Vitória.
E que tenhamos a força p enjaularmos a Vermelícia . Sonhemos!

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