Socialista Morena
Cultura

Uma taça de vinho do Porto com Lygia, socialismo e vida após a morte

"Eu era socialista na juventude, agora virei socialista outra vez", disse a escritora, em entrevista no início dos anos 2000

Lygia Fagundes Telles em 1983. Foto: Madalena Schwartz/IMS
Cynara Menezes
05 de abril de 2022, 18h23

Lygia Fagundes Telles gostava de oferecer aos visitantes do seu apartamento nos Jardins, em São Paulo, uma tacinha de vinho do Porto, que ela degustava, ainda que fosse no meio da manhã, na companhia de um cigarro. Isso deve fazer bem para a saúde, porque Lygia viveu feliz e longamente, e se foi desse mundo de causas naturais, aos 98 anos, nesta segunda-feira, a duas semanas da Páscoa, que se celebra no domingo 17 de abril, dois dias antes do aniversário de número 99 da escritora. Lygia adorava a Páscoa, para ela “a festa mais linda”.

Houve um tempo em que fiquei afastada de tudo, meio perplexa. Estava meio desesperançada, e isso é ruim porque faz com que você de certo modo deponha as armas. Não pode depor as armas, tem de segurá-las até o fim. Seja a causa que for, é a tua causa

Naquela manhã de 22 anos atrás em que fui eu a visitante, escondeu a idade de mim. “Tenho a idade da Terra”, brincou. Depois desta entrevista, recebi dela alguns livros autografados de presente nas redações por onde passei. Mas só a encontraria pessoalmente de novo em acontecimentos sociais em São Paulo. Num deles, na inauguração da exposição sobre os 70 anos de Hilda Hilst no SESC Pompéia, em dezembro daquele ano, o olhar atento e atencioso de Lygia se apiedou da minha solidão paulistana.

–Cynara, tão bonita e tão sozinha… Vou te apresentar um amigo meu, o Cony.

Eu achei hilário. Exatamente um ano depois da entrevista, na Páscoa de 2001, Lygia leu algum texto meu sobre a questão racial (não lembro qual) e me enviou um bilhete, em papel timbrado da Academia Brasileira de Letras, dentro do livro de contos A Estrutura da Bolha de Sabão. “Cynara, bom dia! Excelente o seu texto sobre o negro, excelente. Um jovem me perguntou, ‘a senhora não toca nisso, preconceito de raça?’ Respondi, ‘leia o meu conto A Medalha‘. Pronto. E como você falou tão profundamente no assunto, vai este meu livro com o conto, abraço, até breve! Lygia.”

Bilhete de Lygia à autora. Foto: reprodução

Logo abaixo havia um post scriptum: “Estou fora de forma (fadiga mental), mas quando ficar bem a gente faz a entrevista, hein?” Nunca mais a entrevistei. Mas o papo que tivemos entre goles de vinho do Porto duas décadas atrás permanece único e absolutamente atual.

A escritora me surpreendeu ao se revelar bastante religiosa, daquelas de rezar e tudo, e socialista. Lygia foi atuante na luta contra a ditadura militar e sempre se posicionou politicamente em favor dos excluídos. No discurso de posse na Academia, em maio de 1987, preferiu homenagear os “malditos”, “os que escolhem a ruptura”, para chegar ao poeta baiano Gregório de Matos Guerra, patrono da cadeira 16, que ela iria ocupar. Lygia imagina o Boca do Inferno vivendo no Brasil de nossos tempos.

“Com esse humor incandescente, ele iria se empenhar de novo na denúncia dos males que desde o século 17 já afligiam o país, centralizados na política com seus demônios crônicos na delirante corrida pelo poder: o demônio da Gula (leia-se voracidade), o demônio da Vaidade e o demônio da Soberba. O burocrático demônio da Preguiça, esse vem se arrastando por último”, ela diz, sem se deixar intimidar pela pompa dos acadêmicos em seus fardões, pelas personalidades, autoridades. Pela elite que tão bem Gregório de Matos denunciou.

“O duro ofício de testemunhar um planeta enfermo nesta virada do século. Às vezes, o medo. Quando perseguido, o polvo se fecha nos tentáculos e solta uma tinta negra para que a água em redor fique turva e, assim, camuflado, ele possa então fugir. A negra tinta do medo. Viscosa, morna. Mas o escritor precisa se ver e ver o próximo na transparência da água. Tem de vencer o medo para escrever esse medo. E resgatar a palavra através do amor, a palavra que permanece como a negação da morte. Às vezes, a esperança.”

No livro Passaporte para a China, Lygia conta que encontrou o jornalista Samuel Wainer na rua, quando estava prestes a embarcar para o país asiático, em 1960. “Eu ia apressada pela rua Marconi quando ele me fez parar, ‘Aonde vai com tanta pressa?’. Vou tirar meu passaporte para a China!, respondi. Ele ficou me olhando meio perplexo, ‘Mas você é comunista?’. Achei melhor rir, Não, não sou comunista, sou assim subversiva mas não comunista, nem eu nem os meus companheiros de viagem, é uma delegação de escritores convidados para as festas de outubro, desconfio que foi o Jorge Amado que indicou os nomes e daí lá vai a delegação e eu no meio…” Wainer convidou-a a registrar a viagem em crônicas para seu jornal Última Hora, e ela o fez, com o título que leva o livro.

Lygia em Pequim, 1960. Foto: arquivo pessoal

Na China, a escritora, que amava gatos, estranhou a ausência deles. “Não vi nem cachorro nem gato. Mas por que em Pequim não tem gato? perguntei a Mister Wang e ele sorriu o chamado sorriso amarelo. ‘Não podemos sustentar bichos domésticos, madame. Estamos reconstruindo nosso país, estes luxos ficam para o Ocidente’. Tive vontade de lhe dizer que não gostaria nada de morar num país sem bichos: cachorro ou gato é sempre um fragmento do Paraíso Perdido. Como viver sem um pouco desse fragmento em cidades de cimento e ferro?”, ela conta em A Disciplina do Amor, que considerava seu melhor livro.

A mim, Lygia Fagundes Telles se definiu ideologicamente como socialista. “Eu era socialista na juventude, agora virei socialista outra vez”, disse. Perguntei se achava que era essa a única solução para o mundo. “Creio que sim. E existe, não venha me dizer que é decadente, é caipira, fora de moda. Enquanto houver miséria no mundo, como disse o professor Miguel Reale, haverá socialismo.”

Leiam a entrevista abaixo, na íntegra.

***

Lygia Fagundes Telles mantém o sétimo véu

Certo dia, a mãe da escritora Lygia Fagundes Telles disse para a jovem estudante de Direito, pré-revolução sexual: “Minha filha, faça o que você fizer, guarde o seu sétimo véu”. Mais de 50 anos depois, ao redor dos 70 anos (ela não gosta de falar exatamente quantos. “Tenho a idade da Terra”, diz), Lygia, rindo, confessa que ainda não descobriu que tal sétimo véu será esse.

Pois há um véu fino, tênue, em seu novo livro, explícito no título: Invenção e Memória. O que inventou Lygia e o que apenas relembrou? Ela não revela –põe o véu entre a memória e a imaginação. “É preciso obedecer o mistério”, ensina. Leia a seguir trechos da entrevista em que a escritora fala, impregnada de Páscoa –”a festa mais linda”–, de religião, de memória, de saudade e de política: voltou ao socialismo da juventude, se diz “decepcionada” com o presidente Fernando Henrique Cardoso e declara voto no PT.

Sou espiritualista. Às vezes, acredito em reencarnação, às vezes, em transmigração das almas. Minha alma irá para uma flor, para um bicho, posso ser um arbusto, um peixe, um gato

– O que há de memória e de invenção em seu novo livro?
Lygia Fagundes Telles
 – Na minha opinião, a invenção e a memória são uma coisa só. Não as considero separadas. Tem uma menina no livro que pode ser eu, mas também uma personagem que inventei. Jamais escreveria uma autobiografia, gosto de ler a dos outros. Você próprio tentar se desembrulhar não dá certo. É socrático: é impossível conhecer a si próprio, é mais fácil conhecer o outro.

– A certa altura, também, já é difícil distinguir o que se inventa do que se viveu, não é?
Lygia
 – É como um liquidificador, você põe banana, abacate, na hora de provar pode até identificar uma fruta ou outra, mas estão entranhadas. Também não interessa. Por que essa separação das coisas? É tão bom as coisas misturadas, os sexos misturados, os anjos e santos misturados com os demônios. O Rilke dizia: ‘Não quero perder meus demônios porque neles também estão meus santos e vice-versa’. Gosto dessa ambiguidade entre o bem e mal, que está no livro.

– Tanto quanto invenção e mistério, bem e mal são indivisíveis?
Lygia
 – A natureza humana é misturada demais. A crueldade e a bondade, os bons e os maus sentimentos. Alguns santos, como santo Agostinho, conseguiram que aquele lado, a banda podre, desaparecesse. Esse seria o triunfo do próprio cristianismo. Jesus Cristo também conseguiu.

– O Cristo tinha uma certa vaidade, não tinha?
Lygia
 – Os apóstolos tinham. Ele, não. Jesus Cristo, não (repete várias vezes). A paixão que tenho nesse planeta enfermo é Jesus Cristo. Ele era tolerante, sabia que um dos apóstolos o iria oferecer aos algozes e permitiu a convivência.

– Jorge Luis Borges tem uma teoria de que o verdadeiro Cristo era Judas, e não Jesus.
Lygia
 – É uma coisa extraordinária o que a imaginação humana faz em torno de tudo isso. Às vezes, tenho vontade de dizer: deixem Jesus Cristo em paz!

– A sra. gosta de O Evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago?
Lygia
 – Muito. Gosto dos agnósticos, eles são apaixonados por Deus. É uma negação da paixão. Negam e se dedicam a isso, se entregam. É a forma de paixão mais revolucionária que existe. Judas tinha paixão por Cristo. Roía as unhas, arrancava as orelhas, entregou Cristo e se matou. Só a morte, só a desaparição, poderia acabar com aquela fonte de sofrimento dele, aquela fonte de amor e de ódio.

Acredito na reza. Tenho paixão por alguns santos. Por santa Terezinha, que não era essa água-com-açúcar que dizem. Era forte, densa, quase tão densa quanto a própria Tereza D'Ávila, que era uma santa filósofa, intelectual

– Quer dizer que a sra. é uma escritora religiosa? Reza?
Lygia
 – Acredito na reza. Tenho paixão por alguns santos. Por santa Terezinha, que não era essa água-com-açúcar que dizem. Era forte, densa, quase tão densa quanto a própria Tereza D’Ávila, que era uma santa filósofa, intelectual. Um dia, enquanto estava na cozinha, preparando o peixe, já tuberculosa, santa Terezinha olhou pela janela do convento, avistou o cemitério lá adiante. Disse: “E se tudo acabar ali?”. Está aí a dúvida.

– A sra. sempre gostou de rezar ou isso é recente?
Lygia
 – Fui anjo de procissão, fui santa Terezinha do Menino Jesus, mamãe me punha nas festas. Mas não vou à igreja. Às vezes, na Semana Santa, gosto de ir ver a imagem de Jesus morto. Acho a Páscoa a festa mais linda que existe, a festa da ressurreição. Isso é uma coisa que me anima, me fortalece. Senão a vida fica insuportável. Saramago me disse que o Brasil é muito otimista. Eu disse para ele não se importar com a aparência frívola do Brasil, que isso é uma máscara. A vida inteira fui completamente consciente da miséria, dos governos desgovernados, afastados de nossa realidade.

– Tem alguma preferência política?
Lygia
 – Eu era socialista na juventude, agora virei socialista outra vez. Houve um tempo em que fiquei meio afastada de tudo, meio perplexa, mas de repente resolvi, como diria Machado de Assis, juntar as pontas: o começo e o fim. Estava meio desesperançada, e isso é ruim porque faz com que você de certo modo deponha as armas. Não pode depor as armas, tem de segurá-las até o fim. Seja a causa que for, é a tua causa.

Lygia e Paulo Emílio Salles Gomes em frente ao túmulo de Karl Marx em Londres. Foto: IMS

– O socialismo é a única saída?
Lygia
 – Creio que sim. E existe, não venha me dizer que é decadente, é caipira, fora de moda. Enquanto houver miséria no mundo, como disse o professor Miguel Reale, haverá socialismo.

– Vota em quem? No PT?
Lygia
 – Vou votar, sim. Vou votar na Marta Suplicy (para a Prefeitura de São Paulo).

– Votou no presidente Fernando Henrique?
Lygia
 – Votei na primeira eleição, depois suspendi o juízo. Foi uma grande decepção para mim o governo dele. É um homem tão inteligente, tão culto, contudo não fez pelo Brasil aquilo que eu esperava. Sou uma jogadora, como meu pai, mas minhas apostas agora são outras em relação ao Brasil. No livro, eu falo da importância dos bombeiros. “Chame os bombeiros”, o Brasil devia dizer. E eles viriam com as cordas.

– Aos 70 anos, se sente uma pessoa imersa em memórias, em lembranças?
Lygia
 – Não, não. Estou interessada em tudo. Minha curiosidade em relação às coisas que estão acontecendo é inesgotável. Quero saber das coisas. E, às vezes, com grande sofrimento. Não me iludo e ao mesmo tempo me iludo, porque, se não houver essa ilusão, esse sonho, estarei liquidada. Essa curiosidade é que é minha força.

Gosto dos agnósticos, eles são apaixonados por Deus. É uma negação da paixão. Negam e se dedicam a isso, se entregam. É a forma de paixão mais revolucionária que existe. Judas tinha paixão por Cristo. Roía as unhas, arrancava as orelhas, entregou Cristo e se matou

– Alguma saudade tem. Do seu marido, Paulo Emílio Salles Gomes (cineasta, morto em 1977)…
Lygia
 – Saudade do que poderia ter sido e não foi. A usança que poderia ter dele, mas estava distraída. Enquanto você está vendo um crepúsculo ou um nascer do sol, quando vê aquele céu esbraseado, não aproveita devidamente aquela visão. Essa fugacidade, essa coisa tão provisória que nós somos, isso nos dá em certos instantes a ilusão da eternidade. Isso é que me dói um pouco. Eu era eterna, ele também. Não precisava me preocupar.

– Acredita em reencarnação?
Lygia
 – Sou espiritualista. Às vezes, acredito em reencarnação, às vezes, em transmigração das almas. Minha alma irá para uma flor, para um bicho, posso ser um arbusto, um peixe, um gato.

– E o que acha que será em outra vida?
Lygia
 – Não vou dizer, de repente um anjo ouve isso, e eu evoluí, já quero ser outra coisa. É preciso obedecer o mistério.

Texto originalmente publicado no jornal Folha de S.Paulo em 22 de abril de 2000

 


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(8) comentários Escrever comentário

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Lindalva L Gurfield em 06/04/2022 - 16h01 comentou:

Embora veja sempre você, Cynara, no 247, não conhecia seu site. Gostei muito da entrevista.
Vou virar freguesa. Abraços de Madison, Wisconsin.

Responder

    Cynara Menezes em 06/04/2022 - 19h28 comentou:

    obrigada, querida

Eugênio BH em 07/04/2022 - 09h57 comentou:

Duas maravavilhas, o texto e a entrevista. Só a arte salva!

Responder

veranise Ferreira em 10/04/2022 - 09h00 comentou:

Encantada com essa matéria! Cynara você é muito chique, elogios, livros e bilhetes recebidos de Lygia Fagundes, não é pra qualquer jornalista. Já compartilhei.

Responder

    Cynara Menezes em 13/04/2022 - 13h17 comentou:

    obrigada!

Luís Carlos Kerber em 11/04/2022 - 13h38 comentou:

O tempo não pára, o socialismo vive (lema de um congresso do PCdoB baseado numa música de Cazuza, um burguês que poderia ter chegado na mesma opinião sobre o Socialismo a qual Lygia Fagundes chegou, mas que a doença fatal dos anos 80 não permitiu que Cazuza chegasse).

Responder

Geronimo Wanderley Lourenço de Viterbo Florentino PEREIRA MACHADO em 16/04/2022 - 11h50 comentou:

Cynara, achei maravilhosa e entrevista com a Lygia Fagundes Teles… Conheci a Lygia e o Paulo Emílio de Sales Gomes, em Fpolis e tenho um Diploma da UFSC, com um Curso de extensão que fiz com eles. Cinema, com Paulo Emílio e Literatura, com a Lyga. Eles eram muito simpáticos. Eu fazia o Curso Clássico, no IEE e me preparava para entrar na UFSC. E cheguei lá em Fevereiro de 1967. Eu era muito jovem. Ainda fazia o Secundário. Enfim, parabéns pela Crônica, pela bela Entrevista com Lygia e por poder te ver, seguidamente, na Tv247.

Responder

    Cynara Menezes em 18/04/2022 - 14h52 comentou:

    que bacana, geronimo! sorte a sua. obrigada

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