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“Confronto”: mídia dos EUA desinforma sobre pancadaria de Israel em funeral de jornalista

Estudos mostram como, ao longo dos anos, imprensa hegemônica escolhe palavras a dedo para beneficiar Israel nas narrativas sobre o conflito

Campanha por Justiça para Shireen. Ilustra de Shirien/ reprodução instagram
The Conversation
18 de maio de 2022, 10h59

Por Maha Nassar, no The Conversation
Tradução Cynara Menezes

A polícia israelense atacou as pessoas que carregavam o caixão da jornalista palestina nacionalizada norte-americana Shireen Abu Akleh na sexta-feira, 13 de maio, batendo nelas com cassetetes e chutando-as quando caíam no chão. No entanto, quem passasse os olhos pelas manchetes com os relatos iniciais feitos por vários meios de comunicação dos EUA teria uma diferente impressão sobre o que aconteceu.

“Polícia de Israel tem confronto com acompanhantes de funeral”, dizia a manchete da reportagem da MSNBC. O Wall Street Journal deu um título similar à história: “Forças Policiais e palestinos se confrontam na Cisjordânia antes de funeral de jornalista”. (No Brasil, os meios de comunicação foram no mesmo caminho, à exceção da Folha de S.Paulo. Confira os prints das chamadas ao longo deste texto.)

A Fox News começou o texto de seu artigo com “confrontos eclodem sexta-feira em Jerusalém enquanto familiares acompanham o enterro da veterana jornalista estadunidense da Al Jazeera Shireen Abu Akleh, que foi morta a tiros enquanto cobria uma operação na cidade de Jenin, na Cisjordânia”.

Não há nenhuma menção nas chamadas destes artigos sobre quem começou a violência, tampouco sobre o desequilíbrio entre uma força policial israelense fortemente armada e o que aparentam ser civis palestinos desarmados. Tal linguagem e omissões são comuns em reportagens sobre a violência praticada pela polícia de Israel ou seu Exército.

Estadão: “confronto” entre policiais armados e pessoas segurando um caixão

Títulos similares foram utilizados após um incidente em abril, quando a polícia israelense atacou fiéis na mesquita de Al-Aqsa, em Jerusalém, durante o Ramadã, mês sagrado dos muçulmanos. No episódio, os ataques da polícia sobre os fiéis –nos quais pelo menos 152 palestinos saíram feridos por balas de borracha e cassetetes– foram amplamente descritas como “confrontos.” E manchetes importam: muitos norte-americanos só leem as chamadas quando consomem informação ou compartilham matérias online.

A utilização de uma palavra como “confronto” pode fazer sentido em um assunto tão litigioso quanto o conflito israelo-palestino, em que atos violentos são perpetrados por ambos os lados. Mas, como pesquisadora da história da Palestina e analista da cobertura da mídia norte-americana sobre este tema, acho que o uso de termos neutros como “confrontos” para descrever os ataques da polícia israelense e dos militares sobre civis é desinformação. Mascara momentos em que as forças policiais de Israel foram violentas contra palestinos que não representavam ameaça a eles. E também confere maior peso às narrativas israelenses do que às palestinas.

“Confrontos” no Correio Braziliense

A mídia dos EUA há muito é acusada de desinformar seu público em relação à violência cometida contra os palestinos. Um estudo de 2021 do MIT sobre a cobertura do New York Times em 50 anos do conflito apontou “um uso desproporcional da voz passiva ao se referir à ação negativa ou violenta perpetrada contra os palestinos”.

Usar a voz passiva –por exemplo, reportando que “palestinos foram mortos em confronto” em vez de “forças israelenses mataram palestinos”– é a linguagem que ajuda a proteger Israel de ter suas ações examinadas de perto. E também ofusca a razão pela qual tantos palestinos estariam zangados com Israel.

O Estado de Minas preferiu “tensão”

Não é só o The New York Times. Uma análise feita em 2019 por pesquisadores do Canadá a partir de 100 mil manchetes em 50 anos de cobertura do conflito por 5 jornais dos EUA concluiu que “a cobertura do conflito pela mídia hegemônica dos EUA favorece Israel em termos tanto de quantidade de histórias cobertas, quanto em dar a Israel mais oportunidades de ampliar seu ponto de vista”. O estudo também apontou que palavras associadas com violência, incluindo “confronto” e “choques”, eram mais usadas em histórias sobre os palestinos do que sobre os israelenses.

Um problema de usar a palavra “confronto” é que ela encobre incidentes nos quais a polícia e as forças de segurança de Israel atacam palestinos que não representam nenhuma ameaça a eles. A Anistia Internacional, grupo de defesa de direitos humanos, um grupo de defesa dos Direitos Humanos, descreveu o recente incidente na mesquita de Al-Aqsa dizendo que a polícia de Israel “atacou brutalmente fiéis dentro e ao redor da mesquita e usou  de violência equivalente à tortura e outros maus tratos para acabar com as reuniões”. A palavra “confronto” não transmite essa realidade.

“Comoção e conflitos”, diz O Globo

Usar o termo “confrontos” também confere maior credibilidade à versão do governo de Israel do que à do governo palestino. As autoridades israelenses frequentemente acusam os palestinos de dar início à violência, alegando que os soldados e a polícia usaram força letal para se defender de ataques palestinos. E é assim que estes eventos são normalmente noticiados.

Mas dados do grupo israelense de defesa dos direitos humanos B’Tselem sobre mortes entre israelenses e palestinos mostram que a maioria dos aproximadamente 10 mil palestinos mortos por Israel desde 2000 “não participaram de hostilidades” na época em que foram mortos.

A manchete correta da Folha

Nós assistimos à tentativa de Israel de transferir a culpa da violência para os palestinos no assassinato da jornalista Shireen Abu Akleh. De acordo com os colegas que estavam na cena do assassinato, um sniper militar israelense deliberadamente atirou e matou a veterana jornalista com um tiro em sua têmpora direita, mesmo com ela estando identificada com um colete e um capacete escrito “PRESS”. Um ou mais atiradores também dispararam contra colegas de Abu Akleh que tentavam socorrê-la, de acordo com testemunhas.

A reação inicial do primeiro-ministro israelense Naftali Bennett foi dizer que “palestinos armados atiraram de forma imprecisa, indiscriminada e descontrolada” no momento do assassinato dela –dando a entender que os palestinos poderiam ter matado Abu Akleh. Depois, quando as evidências desmentiram esta narrativa, as autoridades de Israel mudaram o discurso, dizendo que a origem dos disparos “ainda não pode ser determinada”.

A jornalista Shireen Abu Akleh com seu colete. Foto: Al Jazeera

O New York Times inicialmente noticiou que Abu Akleh “foi morta quando confrontos entre militares israelenses e palestinos armados aconteceram na cidade”. Mais abaixo no mesmo texto, nós lemos que o jornalista palestino Ali Samudi, que foi ferido no mesmo ataque, disse: “Não há palestinos armados, resistência ou até mesmo civis no local”. Esta perspectiva não aparece na manchete ou nos parágrafos de abertura da reportagem.

Dias depois, a análise de um vídeo feita pela agência de jornalismo investigativo Bellingcat concluiu que as evidências “aparentemente confirmam” testemunhas oculares que disseram não haver protestos se formando no local e que o tiroteio partiu de atiradores militares israelenses. O New York Times não atualizou ou corrigiu sua matéria original para reportar esta nova evidência.

O uso do termo “confronto” tem sido amplamente criticado por jornalistas árabes e palestinos. A Associação de Jornalistas Árabes e do Oriente Médio lançou inclusive um guia para repórteres clamando que “evitem o termo ‘confrontos’ em favor de uma descrição mais precisa”

Este é um exemplo de por que o uso do termo “confronto” tem sido amplamente criticado por jornalistas árabes e palestinos. A Associação de Jornalistas Árabes e do Oriente Médio inclusive lançou em 2021 um guia para repórteres clamando que “evitem o termo ‘confrontos’ em favor de uma descrição mais precisa”.

Há um outro problema com “confrontos”. Limitar a atenção midiática do conflito israelo-palestinos aos momentos em que “emergem confrontos” dá aos leitores e espectadores ocidentais um retrato incompleto. Ignora o que o B’Tselem descreve como “a rotina diária de violência do Estado, aberta ou implícita,” que os palestinos enfrentam ao viver nos Territórios Ocupados.

Sem o entendimento da violência cotidiana experimentada pelos palestinos –como tem sido documentada por grupos como o Human Rights Watch e a Anistia Internacional–  é difícil para os consumidores de notícias compreenderem completamente por que os “confrontos” acontecem, em primeiro lugar.

Mas a forma como as pessoas obtêm as notícias está mudando, e com isso também a visão dos norte-americanos sobre o conflito entre Israel e Palestina. Isto é verdade especialmente entre estadunidenses mais jovens, que estão menos propensos a se informar pelas grandes corporações midiáticas. Pesquisas recentes mostram que jovens norte-americanos em geral simpatizam mais com os palestinos do que os mais velhos. Esta mudança atinge jovens judeus norte-americanos e jovens evangélicos, duas comunidades que tradicionalmente tem expressado fortes sentimentos pró-Israel.

Os próprios jornalistas dos EUA estão trabalhando em mudar a forma como a mídia cobre a violência israelense. No último ano, muitos deles –inclusive repórteres do Boston Globe, Los Angeles Times, The Washington Post e ABC News– publicaram uma carta aberta convocando seus colegas a “contar a verdade inteira, contextualizada, sem medo ou favor, e reconhecer que ofuscar a opressão de Israel aos palestinos subverte os próprios padrões de objetividade da indústria”. Até agora, 500 jornalistas assinaram o texto.

Linguagem acurada ao noticiar a violência israelo-palestina não é apenas uma preocupação com a credibilidade jornalística. Também forneceria aos consumidores de notícias dos EUA um conhecimento mais profundo das condições locais e suas mortais consequências.

Maha Nassar é professora associada na School of Middle Eastern and North African Studies, University of Arizona

 


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Bernardo Santos Melo em 18/05/2022 - 13h29 comentou:

Akleh , não é diferente de muitos jornalistas brasileiros comprometidos com a liberdade de imprensa , Jamil é o mais recente ameaçado de morte . Sejamos claros : a luta é desigual e contra a barbárie militar e miliciana nos quatro cantos do planeta .
Não seremos calados , Sr Bannon & Carluxo saibam que perderam pra Trump e Perderão no Brasil , venceremos nas urnas e depois impediremos seus ataques anti democráticos ,
TSE , STF , SENADO e Câmara NÃO FICARÃO SUBMISSOS ao srs LIRA & CIRIM indefinidamente .
Outrossim , existem Generais , Almirantes e Brigadeiros honrados como àqueles que puseram fim ao General Ustra , Silvio Frota e outros vinculados com torturas humilhantes .
Valente Cynara !

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