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Direitos Humanos

Explode o número de indígenas mortos por overdose de opioides nos EUA

País alcançou a marca de 1 milhão de mortos por overdose em dezembro; nativos americanos já têm a maior taxa de mortes per capita

Campanha do Dia de Conscientização dos Indígenas Desaparecidos e Assassinados. Foto: Ministério do Interior/EUA
Da Redação
24 de junho de 2022, 11h56

Por Aaron Bolton, no KHN
Tradução Maurício Búrigo

Enquanto a pandemia se espalhava, durante o verão de 2020, Justin Lee Littledog telefonou à mãe para lhe dizer que estava se mudando do Texas de volta para casa, a Reserva Indígena Blackfeet em Montana, com a namorada, o enteado e o filho.

Eles foram morar com a mãe dele, Marla Ollinger, num rancho de 121,4 hectares numa campina ondulada nas cercanias do vilarejo de Browning, e tiveram o que ela recorda como o melhor verão de sua vida. “Foi a primeira vez que vi Arlin, meu primeiro neto,” disse Marla. Outro neto logo nasceu, e Littledog encontrou trabalho na manutenção do cassino em Browning para sustentar a família que crescia.

Os opioides devastam de tal forma as reservas indígenas dos EUA que a indústria farmacêutica fechou um acordo de US$590 milhões para fugir de futuros processos. As empresas são acusadas de promover drogas com alto poder viciante em comunidades vulneráveis

Mas as coisas começaram a mudar durante o ano e meio seguinte. Amigos e parentes viam o enteado de Littledog, de 6 anos de idade, andando pela cidade sozinho. Um dia, Marla recebeu um telefonema do seu filho caçula com um dos filhos de Littledog chorando ao fundo. Ele não conseguira acordar a namorada de Littledog.

Marla perguntou a Littledog se ele e sua namorada estavam usando drogas. Littledog negou. Explicou à mãe que as pessoas estavam usando uma droga da qual ela nunca havia ouvido falar: fentanil, um opioide sintético que é até 100 vezes mais potente que a morfina (é a mesma “droga legal” que matou o cantor Prince em 2016). Littledog disse que jamais usaria algo tão perigoso.

Então, no início de março, Marla Ollinger acordou com gritos. Deixou os netos dormindo em sua cama e foi para o quarto ao lado. “Meu filho estava deitado no chão,” disse. Ele não estava respirando. Ela seguiu a ambulância até Browning, na esperança de que Littledog tivesse apenas esquecido de tomar seu remédio do coração e que iria se recuperar. Ele foi declarado morto logo após a ambulância chegar ao hospital local.

Marla Ollinger, que perdeu o filho para o fentanil. Foto: Tony Bynum/KHN

Littledog estava entre as quatro pessoas que morreram de overdose de fentanil na reserva indígena naquela semana de março, segundo funcionários de saúde Blackfeet. Mais 13 pessoas que vivem na reserva sobreviveram a overdoses, fazendo um total espantoso para uma população indígena de cerca de 100 mil pessoas.

Esta não é uma notícia que aparece com frequência nos meios de comunicação brasileiros, mas a epidemia de opioides nos EUA alcançou, em dezembro, a impressionante marca de 1 milhão de mortos por overdose entre 1999 e 2020.

Só no ano passado foram 100 mil mortes por overdose, um aumento de 45% em relação a 2019, segundo dados dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças. Cerca de 7 em cada 10 dessas mortes foram a partir de opioides sintéticos, sobretudo do fentanil.

O mais assustador é que agora elas atingem cada vez mais os negros e os nativos americanos: pesquisadores da Universidade da Califórnia apontaram um crescimento de 49% das mortes por opioides entre os negros e 43% entre os indígenas em apenas um ano. Atualmente os nativos americanos têm a maior taxa de overdose por opioides per capita entre todos os grupos populacionais, e cerca de 30% mais alta que a taxa entre pessoas brancas.

O Serviço de Saúde Indígena dos EUA, tem sido cronicamente subtraído de fundos. “O que estamos vendo agora é as disparidades históricas e determinantes sociais da saúde se confirmando”, disse o pesquisador Joe Friedman sobre as mortes por overdose entre indígenas

O vício em opioides devasta de tal forma as reservas indígenas do país que a indústria farmacêutica, Johnson & Johnson à frente, fechou em fevereiro um acordo de 590 milhões de dólares (cerca de 4 bilhões de reais) com representantes de 80% dos nativos americanos para fugir de processos. As empresas são acusadas de promover drogas com alto poder viciante em comunidades vulneráveis.

O fentanil arraigou-se em Montana e em comunidades por todo o Oeste Montanhoso dos EUA durante a pandemia, depois de ser primeiro predominante em grande parte a Leste do rio Mississippi, disse Keith Humphreys, da Comissão da Crise Norte-Americana dos Opioides da Universidade de Stanford-Lancet.

Funcionários da polícia de Montana interceptaram um número recorde de pílulas azuis-claras feitas para se parecerem com opioides vendidos sob prescrição como o OxyContin. Nos três primeiros meses de 2022, a Polícia Rodoviária de Montana apreendeu mais de 12 mil pílulas de fentanil, mais que três vezes o número de 2021 inteiro.

Em Montana, a taxa de mortalidade por overdose de opioides de pessoas indígenas era duas vezes maior que a de pessoas brancas de 2019 a 2021, segundo o Departamento de Saúde Pública e Serviços Humanos do Estado. A razão, em parte, é que índios americanos têm relativamente menos acesso a recursos para atendimento a saúde, disse Joe Friedman, pesquisador da UCLA (University of California in Los Angeles) que coordenou o estudo.

“Com o suprimento de drogas ficando tão perigoso e tão tóxico, são precisos recursos e conhecimento e perícia e fundos para se ficar salvo,” disse Friedman. “É preciso acesso à redução de danos. É preciso acesso a tratamento de saúde, acesso a medicamentos.”

O Serviço de Saúde Indígena dos EUA, responsável por providenciar atendimento de saúde a muitas pessoas indígenas, tem sido cronicamente subtraído de fundos. Segundo um relatório de 2018 da Comissão de Direitos Civis dos EUA, as despesas por paciente do IHS (Indian Health Service, na sigla em inglês) são significativamente menores que as de outros programas de saúde federais.

“Acho que o que estamos vendo agora é que disparidades históricas e determinantes sociais da saúde estão como que se confirmando”, disse Friedman, referindo-se às mortes por overdose desproporcionais entre indígenas americanos. Stacey Keller, membro do Conselho Blackfeet de Negócios Tribais, disse que testemunhou ele mesmo a falta de recursos, quando tentava conseguir tratamento para um membro da família. Disse que apenas encontrar um local para desintoxicação já era difícil, e ainda mais encontrar um para tratamento.

“Nossas instalações de tratamento aqui não estão equipadaa para lidar com o vício em opioides, então geralmente os pacientes são encaminhados para fora,” ela disse. “Um dos problemas que temos visto por todo o Estado, e até mesmo na parte Oeste dos Estados Unidos, é que muitos dos centros de tratamento estão lotados.”

Centro de Browning, Montana. Foto: Tony Bynum/KHN

O centro de tratamento local não possui a perícia médica para supervisionar alguém passando por abstinência de opioides. Somente dois leitos de desintoxicação estão disponíveis no hospital local do IHS, disse Keller, e estão quase sempre ocupados por outros pacientes. O sistema de cuidados de saúde na reserva tampouco oferece tratamento de assistência com medicação.

Os locais mais próximos para se conseguir buprenorfina ou metadona –drogas usadas para tratar o vício em opioide– estão de 48 a 160 quilômetros de distância. Isso pode ser um fardo para pacientes que são obrigados por leis federais a comparecer a cada dia aos dispensários autorizados para receber a metadona ou fazer jornadas semanais para a buprenorfina. Keller disse que chefes tribais requisitaram assistência do IHS para aumentar recursos de tratamento e uso de outras substâncias na comunidade, sem quaisquer resultados.

O consultor do Programa de Abuso de Álcool e Substâncias do IHS, JB Kinlacheeny, disse que o órgão tem feito grandes expedientes para alocar fundos diretamente às tribos, a fim de que conduzam seus próprios programas.O Conselho de Chefes Tribais das Montanhas Rochosas, um consórcio de tribos de Montana e Wyoming, está trabalhando com a Fundação de Saúde de Montana em um estudo sobre a exequibilidade de um centro de tratamento operado pelas tribos a fim de aumentar a capacidade, especificamente para membros tribais. Tribos de lado a lado de ambos os estados, inclusive os Blackfeet, aprovaram deliberações apoiando o esforço.

Líderes políticos dos Blackfeet declararam estado de emergência em março, após as overdoses de fentanil. Pouco tempo depois, alguns filhos do presidente do conselho tribal foram presos sob suspeita de venderem fentanil da sua casa. O conselho exonerou o presidente Timothy Davis de seu cargo no início de abril.

Browning fica na Reserva Indígena Blackfeet em Montana. Foto: Tony Bynum/KHN

A tribo instituíra uma força-tarefa para identificar necessidades tanto de curto como de longo prazo para responder à crise dos opioides. A investigadora de polícia tribal blackfeet Misty LaPlant está ajudando a conduzir o programa.

Dirigindo por Browning, LaPlant disse que planeja treinar mais pessoas na reserva para ministrar naloxona, uma medicação que reverte overdoses de opioides. Ela também quer que a tribo ofereça troca de agulhas para reduzir infecções e disseminação de doenças como o HIV. Há também esperança, disse ela, de que uma reorganização do departamento de saúde tribal resulte em um balcão único para que residentes da Tribo Blackfeet encontrem recursos ao vício em drogas dentro e fora da reserva.

Contudo, ela disse que resolver algumas das questões subjacentes –tais como pobreza, moradia e insegurança alimentar– que tornam comunidades como a Tribo Blackfeet vulneráveis à crescente crise do fentanil é um enorme desafio que não será concluído tão cedo, sejam quais forem as circunstâncias.

“Você poderia conectar o trauma histórico, os traumas não resolvidos em geral, e a angústia, o que torna nossa comunidade vulnerável,” disse ela. “Se você olhar para o impacto do colonialismo e para as comunidades e pessoas indígenas, há uma correlação ali.”

Marla Ollinger está feliz de ver as iniciativas crescerem no combate ao vício em opioides e fentanil, na esteira da morte do seu filho e de outras pessoas. Como uma mãe que lutou para encontrar os recursos que salvassem seu filho, ela tem esperança de que ninguém mais tenha de passar por tal experiência. “É de partir o coração assistir seus filhos morrerem desnecessariamente,”disse ela.

Esta história integra uma parceria entre a Rádio Pública de Montana, a NPR (National Public Radio, a rádio pública dos EUA) e a KHN (Kaiser Health News)

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Pedro de Alcântara em 28/06/2022 - 21h29 comentou:

O dominante nos States é que os problemas não se revolvem mais. Milagre não vai acontecer. Também os chamados milagres econômicos ficaram no passado. Agora é a dura realidade de um império que está à deriva.
Já se fala na pobreza de 140 milhões de pessoas num país que se aperfeiçoou em produzir armas e ter na morte seu objetivo prioritário.
Tanto em termos sociais, quanto econômicos, a solução para os Estados Unidos, como também para todos os países que ainda chamamos de capitalistas, é uma transformação radical: o socialismo.
Quem não vê isso sofre daquela cegueira de que falava Brecht: cegueira política.

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