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Cultura

Marx vai ao cinema: “Coringa” e a luta de classes

Filme sobre o arqui-inimigo de Batman leva a revolta popular contra a burguesia para as ruas sombrias de Gotham City

Joaquin Phoenix como Coringa. Foto: divulgação
Guilherme Coutinho
07 de outubro de 2019, 16h29

***ATENÇÃO: este texto contém spoilers***

Logo no início do primeiro capítulo do Manifesto do Partido Comunista, escrito por Karl Marx e Friedrich Engels em 1848, consta um dos mais célebres conceitos sobre o comunismo: “Até hoje, a história de todas as sociedades é a história das lutas de classes”.

Depois do Manifesto, o mundo não seria o mesmo, ainda que outras obras, como O Capital, também da dupla de filósofos, tenham contribuído de forma contundente para as revoluções socialistas que ocorreram várias décadas depois, transformando, de forma irreversível, a relação entre os meios de produção e a burguesia com o proletariado.

No filme Coringa, de Todd Philips, com Joaquin Phoenix no papel título, talvez Arthur Fleck fosse mais um anônimo, um excluído da sociedade em meio à luta de classes, que aparece como pano de fundo de toda a obra. Como milhares de outros menos afortunados, o personagem tem uma precária condição social e uma conjuntura psiquiátrica que o colocam, diretamente, no lado menos favorecido da sociedade.

Na trama, os lixeiros estão em greve por viverem na miséria, e a população, sobretudo os 'menos afortunados', se encontra em estado de revolta, não apenas contra o governo, mas contra a burguesia, num local com um visível abismo econômico e social

Phoenix conduz –de forma genial, diga-se de passagem– o derrotado palhaço que sonha ser comediante, em um dos mais enigmáticos, cultuados e psicologicamente complexos personagens da história do cinema. Afinal, pode ser uma das raras vezes em que dois atores são premiados com o Oscar pela interpretação do mesmo personagem (Heath Ledger levou o prêmio máximo da academia em 2009, interpretando o Coringa em The Dark Knight). O palhaço, certamente muito mais que seu arqui-inimigo Batman, extrapolou o mundo dos quadrinhos para permear, de vez, o mundo da sétima arte: o filme venceu o Leão de Ouro, prêmio máximo do Festival de Veneza.

O filme se ambienta na cidade fictícia de Gotham City, no início dos anos 1980. Na trama, os lixeiros estão em greve por viverem na miséria, e a população, sobretudo os “menos afortunados”, para usar um termo da própria película, se encontra em estado de revolta, não apenas contra o governo, mas contra a burguesia, num local com um visível abismo econômico e social.

Para entender a estética do filme, do que não pretendo tratar diretamente nesse texto, é extremamente aconselhável que o expectador tenha lido Alan Moore, o mago dos quadrinhos que criou a história canônica do personagem, no clássico A Piada Mortal, e visto os filmes dirigidos por Martin Scorsese, que têm o estilo de direção assumidamente tido como referência para O Coringa.

Ao assassinar três milionários no sombrio metrô de Gotham, o palhaço passa a ser considerado, por parte da população, como um vigilante. A população, em estado de revolta, começa a ter como referência o palhaço sociopata em seus ideais revolucionários

A direção de Todd Philips, sobretudo, nos remete imediatamente a Taxi Driver, de 1976, estrelado por Robert De Niro, que, com um papel menor em Coringa, mas com seu habitual brilhantismo, atua como alusão viva a Scorsese. Curioso é que o diretor norte-americano causou polêmica recentemente ao declarar que os filmes da Marvel “não são cinema” –o que nos faz concluir que Coringa, da arqui-rival DC, é cinema.

O principal antagonista do Homem-Morcego não é exatamente um comunista que pretende liderar uma sublevação popular. Aliás, talvez o protagonista seja a mais clara expressão do anarquismo. Mas, ao assassinar três milionários no sombrio metrô de Gotham, o palhaço passa a ser considerado, por parte da população, como um vigilante. Um vilão que se transforma em um anti-herói no decorrer do filme. A população, em estado de revolta, começa a ter como referência o palhaço sociopata em seus ideais revolucionários.

“Matem os ricos”, estampa a capa de um jornal no dia subsequente aos assassinatos. E logo a população toma as ruas, com os lemas de “somos todos palhaços” e “morte à burguesia”. A população, que admira o cruel ato do protagonista, não deixa de lembrar, novamente, Alan Moore em uma de suas mais célebres obras, V de vingança. O povo mascarado, dessa vez como palhaço, toma as ruas, saqueando lojas e enfrentando a polícia, com um ideal por trás de seus atos.

Impossível não lembrar também da recente história brasileira protagonizada pelos chamados “black blocs”. A população mais pobre, literalmente, pede a cabeça da burguesia, iniciando, talvez sem perceber, uma luta real de classes, com o proletariado à frente das ações. Atos de vandalismo e confrontos com a polícia nos trazem à memória as cenas que vimos nos jornais, em 2013, no Brasil.

Mas, em Gotham, o movimento segue até o final, sem ser capitaneado pela direita ou qualquer movimento político que não seja a luta contra a burguesia. Coringa passa a ser uma referência ainda maior para os palhaços mascarados que tomam as ruas, ao assassinar, ao vivo, um famoso apresentador de televisão que o havia convidado para ser uma bizarra atração de seu programa.

A luta de classes por trás da história central é clara e nítida. Como no Brasil tivemos os mascarados black blocs, Gotham tem uma legião de mascarados que, sem o maniqueísmo clássico entre o bem e o mal dos filmes baseados em HQs, promove uma violenta revolução social

Claro que estamos tratando de uma obra de ficção, mas a luta de classes por trás da história central é clara e nítida. Como no Brasil tivemos os mascarados black blocs, Gotham tem uma legião de mascarados que, sem o maniqueísmo clássico entre o bem e o mal dos filmes baseados em quadrinhos, promove uma violenta revolução social. Naturalmente, o filme recebeu diversas críticas negativas pela ousadia do roteiro.

Em setembro, Phoenix abandonou uma entrevista ao jornal britânico The Telegraph após o repórter perguntar se o filme não acabaria “inspirando exatamente o tipo de pessoa de que a história trata, com resultados potencialmente trágicos”. O ator acabou retornando e respondendo que isso nunca havia lhe passado pela cabeça.

Uma semana após seu lançamento, Coringa se tornou sério candidato a ser o mais bem sucedido filme baseado em HQ da história. Em sua estreia, bateu recorde de bilheteria nos EUA, atingindo 93,5 milhões de dólares, segundo a revista Variety. A atuação de Phoenix, uma unanimidade entre os críticos, muda, para sempre, um dos mais complexos personagens do cinema. O roteiro é primoroso e transporta a luta de classes para as ruas de Gotham City. De Moore a Marx, história e ficção se misturam de forma genial no filme. Realmente imperdível.

 


(9) comentários Escrever comentário

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Adler meets Frankl em 13/10/2019 - 08h48 comentou:

Vi o filme. Excelente. Que fotografia linda, ultra noir.

Acho que ele trata de dois temas gerais: doença mental e gentileza (ou a falta dela).

Não tem nada de “incel” ou “luta de classes”. Isso é coisa de ativista e ressentido político que transformou algumas categorias acadêmicas em mania própria.

Ao ir ao “show do Murray” o Joker deixa claro do princípio que os protestos de rua com o tema do “palhaço” são uma bobagem para ele.

O ponto central é simples: trate todas as pessoas muito bem todos os dias. Você pode ser mais um cretino na vida de quem só está sujeito a cretinos. E um dia a corda arrebenta. Não em um ataque terrorista ou motim (muito menos revolução), mas em tristeza, depressão, indigência e suicídio silencioso.

Assim como o sexo oposto não é uma obsessão do personagem. A vizinha se torna objeto de delírio apenas porque ela é a única pessoa que o trata com o mínimo de afeto e descontração.

Carry on.

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Hugo César em 15/10/2019 - 18h48 comentou:

Excelente leitura, compartilho totalmente.
O filme trata de insanidade, caos, tristeza, solidão, etc, mas nada, nada, relacionado à luta de classes ou algo do gênero.

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Renata Vieira em 17/10/2019 - 09h12 comentou:

Concordo contigo Cynara! O filme mostra claramente uma luta de classe. Uma LUTA, literalmente! É muito bem contextualizada desde o comecinho do filme, mostrando a situação de caos em que estão vivendo os cidadãos da periferia em contraste com o luxo da burguesia nas suas mansões!

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Carletto em 18/10/2019 - 20h56 comentou:

Nem de perto isso é ideal. Marx conseguiu acabar com tudo. Não tem a minima de graça o que ele fez com a educação ou com qualquer outra coisa que venha dele.
Crenças baseadas nele, afogam o ser humano num abismo sem fim.
Tudo que ele se baseou, virou um nada.

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Carletto em 18/10/2019 - 21h00 comentou:

Não tem nada de igual. Toda a sua luta para ser normal acaba em tragedia. Sua paixão por algo somente o fez cair em um labirinto escuro onde pessoas com problemas psicológicos entram. É o começo do fim para aqueles que não tem tratamento adequado. O filme mostra que pessoas com problemas… acabam com mais problemas e causando muita dor em outras pessoas. Pessoas problemáticas causam mais problemas.

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Daiane em 19/10/2019 - 13h35 comentou:

Somente um completo alienado para não vislumbrar a luta de classes do início ao fim do filme. Se abrir os olhos, notará o estrago que esse sistema insano provoca, hoje, nós outros, amanhã, em vc! Aos cães de guarda da Casa-grande: Marx presente!

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Ricardão em 25/10/2019 - 17h37 comentou:

Esperava seu comentário do filme. E pq um filme dos EUA criticando o capitalismo em crise desde 2008 e q arrasta, sufoca, menta, mata democracias na AL e agora no Brasil? Uma clara alusão a quebra de 1930. Mas n há um new deal e nem um roosevelt nem um Vargas(ele foi preso). O filme fala mesmo q é preciso fazer algo, e o socialismo virá, até por aquele q anestesiado pelo ódio da burguesia n liga pra igualdade, coletivo, himanidade. Se Coringa foi o bom moço até a loucura lhe tomar o juízo? Como será batman?

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Lu Freitas em 01/11/2019 - 09h48 comentou:

filme “CORINGA” é magistral. A ideia maniqueísta que sempre definiu os lugares do CORINGA e do BATMAM no imaginário popular é esfacelada de forma desconcertante diante do telespectador. Ambos são inseridos num contexto urbano e social reais, mas dissimulados na Gotan City dos quadrinhos. O filme denuncia a luta de classes dentro do sistema excludente em que vivemos. Mas, ao mesmo tempo, também o dissimula por trás da loucura de Arthur e do caos social que se segue, pra o qual, o Coringa foi o estopim. É neste caos que o sistema forja a troca de posições no imaginário do povo, criando o “herói” dos ricos e o “bandido” dos pobres como os quadrinhos querem que o conheçamos. Putz! Nunca mais verei BATMAM como antes.

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Ana Lopes em 02/11/2019 - 09h45 comentou:

Muito boa a sua análise do filme e muito interessante os referenciamentos que fez com outros filmes, com o HQ V de vingança, com os Black blocs e com o manifesto comunista. Mas, vc esqueceu ou não percebeu que o filme faz uma homenagem e referência direta ao Charles Chaplin em dois momentos muito sensíveis para o Arthur. No primeiro, qdo ele vai encontrar o seu suposto pai em um cinema em que Chaplin está sendo exibido e lá fora há uma multidão de palhaços. No segundo, qdo ele vai encontrar-se com o apresentador humorista que é seu grande ídolo. Ao entrar no palco toca ao fundo a famosa musica do Chaplin. Será que apenas eu percebi a conexão centre Chaplin e o Coringa? Ambos personificaram um palhaço que leva uma vida miserável e estão na margem da sociedade que separa os ricos dos menos afortunados.

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