Socialista Morena
Cultura

Menos é mais: após a pandemia, a moda será sustentável –ou não será

Com o consumo de roupas em queda no mundo, a principal tendência agora é produzir sem agredir tanto o planeta

Foto: Alex Bamford/Lou McCurdy – PlanetCare
Iara Vidal
06 de abril de 2021, 12h57

A sustentabilidade é apontada como a principal tendência da moda a partir de 2021 e para o mundo pós-pandemia da Covid-19. Um dos mais importantes relatórios da indústria fashion, The State of Fashion 2021, produzido pela consultoria McKinsey & Company em parceria com a publicação especializada Business of Fashion, fez essa previsão. O estudo destaca a tendência “menos é mais”, que consiste em menos superprodução e mais sustentabilidade.

“Uma percepção que muitas marcas e varejistas tiveram: obviamente, os consumidores estão comprando menos. E muitas marcas tinham uma oferta muito ampla: em muitas categorias diferentes, dividida entre marcas e submarcas, dividida em muitas, muitas temporadas e muitas, muitas quedas. A realidade é que o consumidor atualmente quer menos. O consumidor também quer mais clareza. As marcas estão tentando conseguir isso”, diz o texto.

À medida que o coronavírus se alastrava pelo planeta, o setor registrava um dos piores anos da História. Quase três quartos das empresas do ramo fashion com ações em bolsas de valores perderam dinheiro em 2020

A indústria global da moda foi duramente impactada pela pandemia da Covid-19 em 2020. À medida que o coronavírus se alastrava pelo planeta, o setor registrava um dos piores anos da História. Quase três quartos das empresas do ramo fashion com ações em bolsas de valores perderam dinheiro, revelou o relatório.

O estudo mostrou ainda que a Covid-19 mudou o comportamento do consumidor e interrompeu as cadeias globais de fornecimento do setor. No rastro do vírus, avalia o documento, a sustentabilidade na indústria fashion ganhará corpo como tendência-chave. A aposta é que serão intensificadas as discussões e a polarização sobre excesso de consumo e práticas comerciais irresponsáveis.

Em um sistema capitalista, essa aposta de uma moda sustentável deixa à mostra uma inevitável contradição. De um lado, a sustentabilidade pressupõe frear o uso de recursos. De outro, o capitalismo acelera a produtividade para alcançar o lucro.

“Para o modo de produção continuar ‘funcionando bem’ o capital precisa crescer, não pode estagnar e muito menos encolher. Assim, pela sua própria dinâmica, por meio da concorrência e do desenvolvimento tecnológico, o capitalismo impele a indústria a produzir sempre mais”, explica a doutora em design pela PUC-Rio e professora universitária Joana Contino.

Como driblar a inevitável contradição que uma moda sustentável tem no sistema capitalista? De um lado, sustentabilidade pressupõe frear o uso de recursos. De outro, o capitalismo acelera a produtividade para alcançar o lucro

Joana é autora da tese de doutorado Design, ideologia e relações de trabalho: uma investigação sobre a indústria da moda no capitalismo tardio que investiga o modo pelo qual a ideologia burguesa opera no campo do design. Para ela, não existe moda sustentável. Afinal, a moda é uma expressão desse processo de aceleração que caracteriza o capitalismo. Trata-se de um setor produtivo tipicamente capitalista. Inclusive, surgiu e se desenvolveu a par e passo com esse modo de produção.

Não é por acaso que a moda é considerada a filha predileta do capitalismo. A indústria fashion reúne todos os atributos para fazer prosperar o Grande Capital: culto a fantasias (fetiches) e novidades, instabilidade, temporalidade e efemeridade, como ensina Gilles Lipovetsky no clássico O Império do Efêmero, de 1987.

Desde o primeiro giro da Revolução Industrial, quando abandonamos o modo artesanal de fazer roupas, graças ao carvão como energia e ao tear como modo mecânico de produção; passando pelo segundo, com a energia elétrica e a máquina de costura; o terceiro, com o salto da indústria química pós-Segunda Guerra Mundial, que trouxe o poliéster e o nylon; e no quarto giro, agora, época dos algoritmos, da automação, da internet das coisas e da obsolescência da mão de obra humana; a moda tem sido um espelho icônico das reviravoltas, avanços e recuos do sistema capitalista.

É curioso observar que a indústria têxtil, um dos ramos da cadeia produtiva da moda, tenha sido o estopim da mais emblemática resposta anticapitalista do século 20: a Revolução de 1917. Um grande número de mulheres operárias do setor de tecelagem e costureiras entrou em greve e saiu às ruas em manifestação por pão e paz. Elas bateram de frente com a decisão dos líderes bolcheviques, que consideraram o movimento inoportuno.

O movimento daquele 23 de fevereiro no calendário russo (8 de março no ocidental) deflagrou a primeira fase da Revolução Russa, a Revolução de Fevereiro. Em outubro, o Partido Bolchevique liderou a grande Revolução Russa ao longo de dez dias que abalaram o mundo.

Também não foi ao acaso que a vida das tecelãs tenha sido o ponto de partida para Karl Marx e Friederich Engels desenvolverem a teoria social que originou os marxismos. Àquela época a mão de obra feminina era majoritária nesse segmento. Continua sendo uma atividade essencialmente feminina até os dias de hoje.

O sistema da moda não tem como mudar de fato, para além de ações pontuais ou discursos marqueteiros, se o modo de produção ao qual ela pertence continuar o mesmo. O líder indígena Ailton Krenak compartilha dessa visão.

Há quase um ano, no dia 10 de março de 2020, antes da pandemia da Covid-19, tive oportunidade de perguntar a Krenak sobre a dupla sustentabilidade e capitalismo durante o evento #InspiraUnB, uma aula inaugural de boas-vindas a calouras e calouros da Universidade de Brasília naquele semestre. Ele também falou sobre o tema semanas depois, durante a live “Ideias para adiar o fim do mundo”, que integrou as atividades da Semana Fashion Revolution de 2020.

A simbiose entre moda e capitalismo não anula ações concretas que empresas e consumidores adotam em direção a práticas de produção e consumo menos nocivas ao planeta. “No entanto, essas ações individuais, apesar de serem bem-vindas, são incapazes de mudar o modelo predominante e acabam sendo apropriadas por ele. Enquanto vivermos em uma sociedade regida pelo capital, a dita ‘moda sustentável’, ainda que possa ser bem-intencionada – e nem sempre o é, porque muitas vezes não passa de retórica utilizada para atrair um determinado perfil de consumidor -, não tem como ser mais do que um nicho de mercado como qualquer outro”, analisa Joana.

Há iniciativas muito interessantes que valem ser conhecidas. Como o portal Ecoera, liderado pela ex-modelo Chiara Gadaleta. Desde 2008, o movimento busca integrar os mercados de moda, beleza e design às questões sociais e ambientais. A iniciativa parte dos  17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da ONU. Chiara tem o cuidado de se referir a “práticas sustentáveis” na cadeia produtiva da moda. Não à moda sustentável. Há uma grande diferença entre um termo e outro.

O país vem elaborando políticas ambientais que incluem responsabilidades da indústria têxtil e de confecção desde a década de 1960. Na prática, a cadeia produtiva da moda finge que resíduo têxtil não é sólido

O Modefica é uma plataforma de moda e comportamento transdisciplinar com foco em sustentabilidade e futuro. Criado em 2014 por Marina Colerato, o espaço se transformou em referência sobre esses temas. Dia 10 de fevereiro de 2021, lançou o relatório Fios da Moda, que aborda os impactos da indústria têxtil no Brasil.

O estudo foi conduzido pelo Instituto Modefica em parceria com o Centro de Estudos de Sustentabilidade da Fundação Getúlio Vargas e a consultoria da Regenerate Fashion. O documento revela dados inéditos da produção e consumo de algodão, viscose e poliéster, as fibras mais comuns no país.

Dentre as descobertas do Fios da Moda está o desperdício têxtil. Apenas na região do Brás, na capital paulista, 45 toneladas diárias desse tipo de resíduo vão parar em aterros sanitários. Segundo o estudo, o processo de fabricação –principalmente o corte e a costura– é o que mais gera perda de tecido, com 50% para o algodão, 31% para a poliamida e 29% para o poliéster.

O Brasil produz, anualmente, cerca de 175 mil toneladas de resíduos dessa indústria. Esse número é apenas uma estimativa. O país vem elaborando políticas ambientais que incluem responsabilidades da indústria têxtil e de confecção desde a década de 1960. Na prática, a cadeia produtiva da moda finge que resíduo têxtil não é sólido.

Talvez o termo mais apropriado e honesto para designar a moda do “novo mundo” apontada como tendência seja o de moda circular. O conceito é difundido por entidades como a  Fundação Ellen MacArthur, que avalia que o atual modelo econômico ‘extrair, produzir, desperdiçar’ chegou ao limite.

A economia circular é uma alternativa a esse modelo linear que busca redefinir a noção de crescimento, com foco em benefícios para toda a sociedade. “Isto envolve dissociar a atividade econômica do consumo de recursos finitos, e eliminar resíduos do sistema por princípio. Apoiada por uma transição para fontes de energia renovável, o modelo circular constrói capital econômico, natural e social.’ Ele se baseia em três princípios: eliminar resíduos e poluição desde o princípio, manter produtos e materiais em uso e regenerar sistemas naturais.

O debate sobre a sustentabilidade dentro do sistema capitalista não é novo. A origem do termo “sustentável” ou “sustentabilidade” é atribuída a Hans von Carlowitz (1645-1714). Um ano antes de falecer, em 1713, o contador alemão escreveu o tratado Sylvicultura Oeconomica.

No texto, ele se refere à necessidade do manejo florestal racional para combater a carência de madeira da época, que ameaçava a economia do país. Carlowitz levanta uma questão que continua válida: como produzir sustentavelmente? Ele apresentou quatro estratégias, todas eurocêntricas.

A política, na qual caberia ao poder público e não às empresas e aos consumidores regular a produção e o consumo para garantir a sustentabilidade em função do bem comum. A colonial, em que para resolver a carência de sustentabilidade nacional era preciso buscar os recursos faltantes fora, ou seja, conquistar, subjugar e colonizar outros países e povos.

Havia ainda a alternativa liberal, em que o mercado aberto e o livre comércio regulariam a demanda e o consumo. Logo, a sustentabilidade estaria assegurada caso houvesse apoio para desenvolver unidades de produção nos países onde há abundância de recursos necessários para a produção. Por fim, a opção técnica consistia na busca por inovação tecnológica ou substituição de recursos escassos.

O debate sobre a sustentabilidade dentro do sistema capitalista não é novo. A origem do termo “sustentável” ou “sustentabilidade” é atribuída a Hans von Carlowitz (1645-1714). O conceito de “desenvolvimento sustentável” foi usado pela primeira vez na Assembleia Geral da ONU em 1979

Naqueles primórdios do sistema capitalista, há mais de três séculos, as potências coloniais e industriais europeias derrubaram extensas florestas. A madeira era transformada em lenha para alimentar a incipiente produção industrial. As árvores também eram usadas na construção de navios com os quais essas nações, como Portugal, transportavam mercadorias retiradas de colônias como o Brasil. As embarcações também eram instrumentos para submeter militarmente grande parte dos povos colonizados nas Américas e na África.

As potências do tempo em que nasceu o capitalismo ignoraram a alternativa política proposta por Carlowitz. De uma maneira ou de outra, adotaram uma simbiose entre as outras três estratégias, a colonial, a liberal e a técnica.

A sustentabilidade caminha de mãos dadas com o desenvolvimento. O conceito “desenvolvimento sustentável” foi usado pela primeira vez na Assembleia Geral das Nações Unidas em 1979. Só veio a ser adotado por governos e organismos multilaterais a partir de 1987.

Depois de quase mil dias de reuniões de especialistas sob a coordenação da primeira-ministra da Noruega Gro Brundland, foi publicado o Relatório Brundland – Nosso Futuro Comum. O documento trouxe pela primeira vez a definição tornada clássica: “sustentável é o desenvolvimento que satisfaz as necessidades presentes, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades”.

Antes da pandemia da Covid-10, a indústria global da moda alcançava receita anual de 2,5 trilhões de dólares. Se fosse um país, o setor seria a 7ª maior economia do planeta. Os números superlativos não aparecem apenas no lucro.

O Brasil produz, anualmente, cerca de 175 mil toneladas de resíduos da indústria da moda. Os microplásticos já contaminam as águas e a vida dos rios Amazonas e Xingu, onde foram encontrados resíduos plásticos em quase 30% dos peixes da região

Segundo o relatório Fashion on Climate, do Global Fashion Agenda com a McKinsey and Company, a moda foi responsável, em 2018, por emitir cerca de 2,1 bilhões de toneladas de gases de efeito estufa. Esse número corresponde a 4% das emissões globais e ao total de todas as emissões de CO2 da França, Alemanha e Reino Unido juntos.

Outra pegada trágica deixada pela moda é a poluição dos oceanos por microplásticos, presentes em fios sintéticos derivados do petróleo e amplamente utilizados pela indústria da moda, como o poliéster e o nylon. Essas fibras sintéticas estão presentes em 60% das peças de roupas produzidas no mundo. Quando lavamos peças feitas desses materiais, são liberados microplásticos, o que prejudica a saúde e a biodiversidade de nossas águas.

Estudo da Ocean Wise Conservation Association publicado pela revista científica Nature mostra que o oceano Ártico está completamente poluído por fibras de microplástico. A pesquisa revelou que mais de 92% dessas substâncias encontradas naquelas águas eram microfibras, 73% delas eram feitas de poliéster e tinham a mesma largura e cores dos usados ​​nas roupas.

No Brasil, os microplásticos já contaminam as águas e a vida dos rios Amazonas e Xingu, onde foram encontrados resíduos plásticos em quase 30% dos peixes da região, conforme pesquisas da UFPA (Universidade Federal do Pará).

Resta saber se essa tendência de “moda sustentável” alardeada pela indústria de fato vai desacelerar a produção desenfreada de roupas. E, mais difícil ainda, fará com que a indústria global abra mão de sua essência capitalista de transformar dinheiro em mercadoria para ter mais dinheiro e retroalimentar infinitamente o ciclo predatório desse modo de produção.

 


(4) comentários Escrever comentário

Os comentários aqui postados são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião da Socialista Morena. Todos as mensagens são moderadas. Não serão aceitos comentários com ofensas, com links externos ao site, e em letras maiúsculas. Em casos de ofensas pessoais, preconceituosas, ou que incitem o ódio e a violência, denuncie.

Larissa em 07/04/2021 - 10h38 comentou:

Equipe agradece pela citação do Modefica e o último Relatório Fios da Moda!

Responder

Bernardo Santos Melo em 08/04/2021 - 11h10 comentou:

Bela Moda Sustentável , seremos todos lindos !

Responder

Ronaldo campos em 08/04/2021 - 15h02 comentou:

Bela matéria…sustabilidade sempre vai se um assunto importante para o planeta…e para o futuro que nossa geração vão viver…

Responder

Flaviano Matos em 09/04/2021 - 18h00 comentou:

Boa matéria, mas não se diz “a par e passo” mas “pari passu”.

Responder

Deixe uma resposta

 


Mais publicações

Kapital

Por onde andam as agências de avaliação de risco durante o governo Bolsonaro?


Standard&Poor's, Moody's e Fitch, que rebaixaram a nota do país no governo Dilma, são e serão uma ferramenta do mercado financeiro

Kapital

Horrores do capitalismo: escolas públicas dos EUA marcam crianças sem dinheiro pro lanche


No início de abril, a governadora do estado do Novo México, Susana Martinez, sancionou uma lei proibindo estigmatizar e expor as crianças que não têm dinheiro para a merenda, prática conhecida no país como lunch…