Socialista Morena
Direitos Humanos

Metade dos 434 desaparecidos e mortos na ditadura jamais integrou a luta armada

História em Quadrinhos destaca a repressão aos indígenas durante a ditadura militar

Cynara Menezes
03 de setembro de 2015, 17h10

Existem algumas maneiras de se encarar uma ditadura militar: abaixar a cabeça e viver a sua vida; lutar pacificamente contra ela; pegar em armas e arquitetar planos mirabolantes para tentar destruí-la; ir embora do País; ou aderir e se locupletar, tirando o maior proveito financeiro possível dela. De todas as opções, apenas a última é indigna. Todas as demais são respeitáveis.

A primeira opção, a resignação, foi a da imensa maioria do povo brasileiro. Não se tratava de falta de coragem: nos rincões, muita gente nem sequer tinha a exata noção do que era viver sob uma ditadura. Na superfície, o que chegava até estas pessoas era apenas a necessidade imperiosa de se marchar no dia 7 de setembro e alguns rumores. Se cavassem um pouquinho, a sujeira viria à tona. Mas para quê?

O segundo e valente caminho foi tomado por religiosos, jornalistas, intelectuais, políticos, professores, estudantes, sindicalistas e cidadãos comuns, correndo o risco de ser presos, torturados e mortos. Muitos o foram. Pelo menos metade dos 434 mortos e desaparecidos na ditadura militar jamais integrou a luta armada. Eram apenas jovens que se insubordinaram contra o sistema. Imagina você, aos 20 anos, lutando contra o governo Dilma, ser retirado da sua casa à força por soldados, levado para não se sabe onde e colocado num pau-de-arara para tomar choques elétricos com o fim de fazê-lo confessar sabe-se lá o quê. Era assim nos anos mais duros do regime militar.

A terceira via, os atentados, assaltos e seqüestros, além da guerrilha propriamente dita, foi a escolha de alguns estudantes e militantes políticos que não acreditavam que flores venciam canhões. Contra o terrorismo de Estado, ações armadas –boa parte delas para libertar companheiros que estavam na cadeia, sendo torturados. O seqüestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick, em 1969, por exemplo, exigia em troca a libertação de 15 presos políticos.

Imagina você, aos 20 anos, lutando contra o governo Dilma, ser retirado da sua casa à força por soldados, levado para não se sabe onde e colocado num pau-de-arara para tomar choques elétricos com o fim de fazê-lo confessar sabe-se lá o quê

Fugir do País foi a saída encontrada sobretudo por políticos e intelectuais que temiam por sua vida se permanecessem aqui. Perseguidos pela ditadura, foram proibidos de pisar em território nacional até a anistia, em 1979. Muitos dos que foram embora naquela época nunca voltaram e são brasileiros reconhecidos em suas profissões em países como os Estados Unidos, a França e a Suécia, que os receberam e acolheram como refugiados políticos.

Os que foram embora tampouco são covardes; aqueles que apoiaram e ganharam dinheiro com a ditadura militar no Brasil, sim. Neste bloco se enquadram grandes empresários, empreiteiros, políticos, elite eclesiástica e militar e os maiores grupos de mídia do País. Todos eles não só não sofreram com a ditadura como cresceram sob ela. Tornaram-se mais ricos e poderosos do que eram antes. Quando, já na década de 1980, abandonaram o barco, foi principalmente por entender que continuariam lucrando com a volta da democracia e sem o ônus da mácula no currículo.

É deste lado que está a nova direita brasileira: do lado dos que aderiram à ditadura e que, por isso mesmo, pretendem manchar a imagem de quem lutou contra ela, reduzindo sua reação legítima à de “terroristas”. Conversei com o sociólogo e desenhista Robson Vilalba, vencedor do Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, um dos mais importantes do jornalismo brasileiro, por seus quadrinhos sobre a ditadura militar publicados no jornal curitibano Gazeta do Povo pela ocasião dos 50 anos do golpe, em 2014. Vilalba ampliou e transformou a série numa graphic novel com 13 histórias, Notas de Um Tempo Silenciado (Edições BesouroBox).

– O que você acha das tentativas da direita atual de transformar os guerrilheiros que lutavam contra a ditadura em meros “terroristas” ou “assassinos”?

– Há um certo anacronismo na tentativa de rotular as guerrilhas armadas como uma ‘organização terrorista’, mas esse discurso é relevante para a pesquisa. Fiz o que o sociólogo Durkheim sugere: parti de uma pré-noção para em seguida reconstruí-la. Supomos então que sim: eram terroristas. A pergunta seguinte é: quais eram as provas? Elas não foram apresentadas. Havia o temor de uma formação armada no interior de Minas Gerais, grupos financiados pela União Soviética espalhados pelas regiões rurais no Brasil. Nem mesmo os guerrilheiros sabiam se isso era verdade ou não. Até onde eu entendo, este temor levou a uma guerra totalmente desproporcional entre militares e guerrilheiros, resultando em um extermínio em massa. Quando as dissidências (os grupos da guerrilha armada) começaram a entender isso, eles começaram a se esconder, a tentar sair do Brasil, ou seja, abandonaram a guerrilha. O temor pela morte e pela tortura ficava cada vez maior. Quando entrevistei o cientista político Adriano Codato, e perguntei sobre as provas do ‘golpe comunista’ ele me indicou que lesse o Ato Institucional I, que afirma: ‘A revolução vitoriosa, como poder constituinte, se legitima por si’. Ou seja. nunca precisaram de provas. Incluí o trecho no primeiro capítulo do livro. Essa falta de necessidade de comprovação para sair dizendo que estamos sofrendo uma “ameaça comunista” existe até hoje. E alimenta o ódio de muitas pessoas, sem qualquer fundamento concreto. Basta ver alguns dos cartazes que as pessoas levaram para os últimos protestos incitando a violência contra pessoas que foram contrárias à ditadura. Ainda há muito ódio contra a “ameaça comunista”. E incitar o ódio e o medo é uma das características do que chamamos hoje de terrorismo. Costumo dizer que nem os comunistas sabem onde vai acontecer esse golpe comunista no Brasil. Precisamos investigar mais este período, independentemente da postura ideológica, com seriedade. As recentes descobertas das Comissões da Verdade têm muito a contribuir com isso. Estas constatações precisam agora ganhar o grande público, e esse é um dos principais intuitos do livro.

sonia

Na HQ, o quadrinista traz à tona alguns personagens que não tinham sido destacados em livros e reportagens até agora, guerrilheiros e agentes duplos, alguns deles de seu Estado natal, como a bela paranaense Sônia Lafoz. Integrante da VAR (Vanguarda Armada Revolucionária)-Palmares, Sônia participou do famoso assalto ao cofre da amante do ex-governador de São Paulo Adhemar de Barros, em 1969, e do seqüestro do embaixador alemão Eherenfred Von Holleben, em 1970, quando foi ferida três vezes com tiros na perna, virilha e cabeça, mas conseguiu escapar. O embaixador foi trocado por 40 prisioneiros políticos.

– Você preferiu retratar personagens pouco conhecidos (e também paranaenses). Por que esta opção? 

– Eu queria escapar das histórias convencionais sobre a ditadura. Durante as primeiras reuniões de pauta, na Gazeta, o editor de política, Fernando Martins, havia sugerido que a parte mais textual abordasse aspectos nacionais da ditadura e a parte dos quadrinhos abordasse recortes menores, pequenos relatos de experiências vividas na época. Imaginando que todos os jornais preparariam cadernos especiais sobre a ditadura, optei também por escapar do eixo Rio/São Paulo (às vezes parece que só lá teve ditadura) e centrar no Paraná, Estado onde a Gazeta do Povo circula. Organizei uma pauta que mostrasse também situações contraditórias, como a história do sargento que se opunha ao regime ou do guerrilheiro que era um agente duplo. Queria, para além dos fatos históricos, apresentar personagens complexos, mais humanos, com erros e acertos. Eu não queria ficar preso a estereótipos. Outra coisa da qual eu queria escapar era da visão dualista da história. Normalmente, quando nos remetemos ao período da ditadura, falamos de um tempo dividido em dois blocos. Eu sempre me fazia a pergunta: será que parte desse entendimento não é responsabilidade do nosso olhar dualista? Aprofundando a investigação, acabei constatando essa hipótese. Muitas pessoas se diziam integralistas, nacionalistas ou liberais, mas, mesmo assumindo tal identidade política, acabavam sento tachadas ou de comunistas ou de golpistas, mesmo não sendo nenhum dos dois. Todos eram obrigados a entrar em uma caixinha. Parece que até hoje cobramos isto das pessoas que viveram aquele período.

O quadrinista também destacou outro fato pouco conhecido: a tortura de indígenas pela ditadura e a violenta tentativa de “civilizá-los” à força. Uma das cenas mais impressionantes é o fatídico desfile militar em que índios vestidos como soldados carregam outro num pau-de-arara em Belo Horizonte, nos anos 1970, em “comemoração” à formação da primeira turma da “guarda rural indígena”. As imagens foram encontradas no Museu do índio, no Rio de Janeiro, em 2012, pelo pesquisador Marcelo Zelic, vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais/SP. O registro em vídeo havia sido feito pelo brasileiro descendente de alemães Jesco von Puttkamer.

– Por que você destacou tanto a repressão aos indígenas no gibi?

– Quando eu comecei a trabalhar junto com a editora Danielle Reichelt, já pensando na publicação do livro, ela sugeriu que ampliássemos com histórias novas, que ganharam uma característica das minorias sociais. Ou seja, trouxemos para o centro do debate narrativas que tocassem no tema racial, de gênero e na questão indígena. Como já havia uma história que foi publicada na Gazeta do Povo sobre a expulsão sistemática dos índios da região Oeste do Paraná, com a entrada das duas histórias, o conjunto ganhou mais força. Pesquisando, descobri uma série de reportagens e novos documentos sobre o assunto. Como se trata de uma relação pouco habitual (questão indígena/ditadura), achamos que merecia um bom destaque. Em minha opinião, há duas grandes narrativas sobre a ditadura no Brasil. Uma feita por aqueles que apoiaram o golpe: de que houve uma ‘revolução’ que freou uma tentativa de golpe comunista. E outra, feita pela esquerda, a de que sindicalistas e estudantes foram os maiores perseguidos. É claro que estou dizendo isso de maneira simplista, mas o ponto que quero chamar atenção aqui é que essas narrativas têm ocupado o centro do debate durante anos, disputando o status de ‘verdade histórica’. Mas no interior desta disputa, qual é o espaço para a questão indígena? Qual é o espaço para a questão racial? Qual o espaço para a questão de gênero? Até hoje soam como problemáticas distintas e, muitas vezes e infelizmente, estão diretamente ligadas. Alguns pesquisadores do tema com quem tive contato após a publicação, se espantaram ao ler em quadrinhos essas histórias. Isso só demonstra como a ditadura ainda é um tema que precisa ser explorado. E a visão dualista da história, às vezes nos impossibilita enxergar determinadas nuances que também merecem ocupar o centro da discussão.

notas

GIBI: Notas de Um Tempo Silenciado
AUTOR: Robson Vilalba
EDITORA: BesouroBox
QUANTO: R$38 (104 págs.) – Leitor do blog ganha desconto aqui

 


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