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Meu Nome É Gal: da revolta do proletário Erasmo aos duelos entre voz e guitarra

Ao contrário do que imaginaram os caras do Pasquim, a canção não é "autopropaganda" da baiana e sim uma crítica ao preconceito de classe

Gal e Erasmo em 1969. Foto: reprodução
Cynara Menezes
13 de novembro de 2022, 15h34

No ano de 1969 o Tremendão Erasmo Carlos estava puto. Ser jovem, boa pinta e famoso não bastara para fazê-lo ser bem aceito nos círculos da burguesia brasileira, sobretudo a paulista, exigente com sobrenomes –ele, tijucano, filho único de mãe solteira, só ostentava um, Esteves. Quando o empresário Guilherme Araújo o procurou para compor uma música para o segundo disco de Gal Costa, Erasmo resolveu canalizar toda aquela revolta do proletariado para a canção, da forma mais sutil possível. Assim nasceu Meu Nome é Gal.

“Como um Gatsby da Tijuca, Erasmo descobria que a elite o admitia como entertainer de seus filhos, mas não o admitia como um igual”, escreveu Jotabê Medeiros. Daí os versos “que ele não seja branco/ não tenha cultura, de qualquer altura/ eu amo igual”

Os dois haviam se conhecido no ano anterior. Em 1968, no seu primeiro disco, Gal regravara Se Você Pensa, de Roberto & Erasmo, e a dupla havia composto especialmente para ela Recomeçar, que, segundo o cantor, surgira num flash durante um simples encontro seu com o amigo de fé, irmão camarada. “Ganhei intimidade com aquela gracinha tímida (com trocadilho, afinal o nome dela é Maria da Graça), de cabelo encaracolado, rosto angelical e narizinho deliciosamente arrebitado”, contou Erasmo na autobiografia Minha Fama de Mau.

Gal tinha outra origem social, e dois sobrenomes a mais. Maria da Graça Costa Penna Burgos nasceu na Barra Avenida, bairro de classe média alta e alta de Salvador, em 1945, mas há muitos pontos em comum na biografia dos dois amigos. Em ambos a ausência da figura paterna –Erasmo só conheceu o dele aos 23, já famoso com a Jovem Guarda; o de Gal, que ela viu apenas uma vez, morreu quando a cantora tinha 14 anos. As mães dos dois, duas Marias baianas retadas, foram as grandes incentivadoras: dona Mariah Costa Penna e dona Maria Diva Esteves. Erasmo costuma dizer que é quase baiano: veio de Salvador “na terceira classe de um navio”, no ventre da mãe.

Ao contrário de boa parte da MPB da época, os tropicalistas nunca torceram o nariz para Roberto, Erasmo, Wanderléa e sua turma. “Os tropicalistas foram os primeiros a valorizar a Jovem Guarda”, conta Erasmo Carlos na autobiografia. “Houve um dia, bem no início da guerra babaca entre a linha dura da MPB e a Jovem Guarda, em que Gilberto Gil me disse que reconhecia os méritos do nosso movimento e de seu efeito avassalador na mudança de comportamento dos jovens.”

Na época em que Meu Nome É Gal foi lançada, Gal Costa foi entrevistada pelos caras do Pasquim, que não perceberam a crítica social subliminar na letra e perguntaram a ela se era “autopropaganda”. Erasmo, em entrevista ao próprio Pasquim no ano seguinte, trataria de explicar a mensagem política embutida na ingênua letra. “No Rio a menina pode morar em frente para o mar em Ipanema, milionárias, chega para uma amiga e diz: ‘sabe quem eu tô namorando? O Zeca do Leme’. E o Zeca é o maior pilantra, mas ela tá namorando ele, não quer nem saber, janta na casa dele, ele vai na casa dela”, contou Erasmo.

“Em São Paulo, não. A menina chega para o cara e diz: ‘Olha, estou namorando o João’. E a outra diz: ‘João de quê?’ É isso que eu sou contra. Em Meu Nome é Gal eu e Roberto fizemos a música baseados nisso. O problema me aflige muito, mais do que a ele que é casado, porque estou cansado de namorar menina paulista, ligar pra casa dela e não poder dizer que sou eu, porque se disser o pai dela mata ela e me mata.”

Todo esse incômodo com o preconceito de classe e origem é escancarado nos versos “Não faz mal/ Que ele não seja branco, não tenha cultura/ De qualquer altura, eu amo igual” e “Não precisa sobrenome/ Pois é o amor que faz o homem” da canção.

“Em São Paulo, a menina chega para o cara e diz: ‘Olha, estou namorando o João’. E a outra diz: ‘João de quê?’ É isso que eu sou contra. Em Meu Nome é Gal eu e Roberto fizemos a música baseados nisso”, contou Erasmo Carlos em entrevista ao Pasquim em 1970

Meu nome é Gal
E desejo me corresponder com um rapaz que seja o tal
Meu nome é Gal

E não faz mal
Que ele não seja branco, não tenha cultura
De qualquer altura, eu amo igual
Meu nome é Gal

E tanto faz
Que ele tenha defeito ou traga no peito crença ou tradição
Meu nome é Gal
Eu amo igual
Meu nome é Gal

Meu nome é Gal, tenho 24 anos
Nasci na Barra Avenida, Bahia
Todo dia eu sonho alguém pra mim
Acredito em Deus, gosto de baile, cinema
Admiro Caetano, Gil, Roberto, Erasmo
Macalé, Paulinho da Viola, Lanny
Rogério Sganzerla, Jorge Ben, Rogério Duprat
Waly, Dircinho, Nando e o pessoal da pesada

E se um dia eu tiver alguém com bastante amor pra me dar
Não precisa sobrenome
Pois é o amor que faz o homem

No livro Roberto Carlos – Por isso essa Voz Tamanha, o jornalista e biógrafo Jotabê Medeiros conta mais detalhes de como Meu Nome É Gal “partiu de uma constatação classista: o compositor contou que, após o êxito, passou a ser admitido em festas de ‘bacanas’ do país em todo lugar, mas percebeu também que havia algo estranho: ‘Se tentasse namorar alguma moça de família, sinalizavam que deveriam manter-me em meu lugar’.”

A capa do disco de 1969

“Em outras palavras: como um Gatsby da Tijuca, Erasmo descobria que a elite o admitia como entertainer de seus filhos, mas não o admitia como um igual. Na letra que fez para Gal, contou, isso estava expresso”, diz Jotabê no livro. “Erasmo viveu numa pensão, filho de mãe solteira (baiana). Era o mais proletário dos proletários da Turma da Tijuca. Só foi conhecer o pai já adulto e famoso. Tinha o batismo da sarjeta, brigava de faca na rua. É uma origem diferente de Gal”, disse o jornalista ao site.

De Londres, onde estava exilado, Caetano enviou um bilhete à dupla parabenizando pela canção. “Roberto & Erasmo: acabo de ouvir a música que vocês fizeram para Gal. Fiquei profundamente comovido. Embora eu já esteja há muito tempo em contato com a grandeza do trabalho de vocês, fiquei espantado: vocês são geniais”, escreveu o cantor, que havia “descoberto” Gal em 1963, quando a cantora tinha apenas 18 anos e lhe foi apresentada por Dedé Gadelha, sua futura mulher. Com ela, gravou o icônico álbum Domingo, de 1967.

O bilhete de Caetano a Roberto & Erasmo

Erasmo Carlos também contou ao Pasquim que, quando a música foi composta, ao final da letra, no trecho onde ela cita os nomes de pessoas que admira, havia apenas “Caetano e Cassius Clay”, o lutador Muhammad Ali, cujas posições políticas o cantor aplaudia, e a dupla deixou Gal Costa livre para acrescentar quem quisesse. Dez anos depois da primeira gravação, em 1979, ela grava novamente a canção para o álbum Gal Tropical e esta parte fica de fora. Mas, em 2015, no show ao vivo do disco Estratosférica, Gal volta a declamar seus admirados no final, acrescentando nomes novos aos antigos.

Meu nome é Gal, tenho 70 anos
Nasci na Barra Avenida, Bahia
Todo dia eu sonho alguém para mim
Acredito em Deus mais do que nunca
Gosto de cinema, admiro Caetano, Gil, Roberto, Erasmo
Tom Zé. Antonio Cícero, Milton Nascimento, João Donato
Rogério Sganzerla, Wally, Jorge Benjor, Rogério Duprat
Mas também admiro Moreno, Zeca, Kassin
Mallu, Camelo, Thalma, Alberto, Arthur
Criolo, Jonas, Lira, Júnior, Céu
Pupillo, Guilherme, Fábio, Maurício,
Tomas, Marcus Preto e um pessoal da pesada.

Ao longo dos últimos 53 anos, sem dúvida a canção “de protesto” de Erasmo Carlos foi muito mais percebida como celebração à cantora que por sua crítica ao classismo. Até porque, a partir dos anos 1980, outra “batalha” que não a de classes roubou a atenção dos versos: os duelos entre a voz de Gal e a guitarra, célebres desde a primeira gravação, com Lanny Gordin, e que chegaram ao ápice no disco Gal Tropical. O primeiro guitarrista a duelar com a voz da cantora na turnê foi Perinho Santana (1949-2012).

Mas Perinho teve que viajar com Gil e Robertinho do Recife assumiu o desafio. “O braço da minha guitarra é maior do que o das outras. Em Meu Nome É Gal, eu solava até onde o Perinho ia. Mas num ensaio eu dei a nota mais aguda para Gal responder e ela disse que não conseguiria. No segundo dia, eu esqueci e dei uma nota a mais. Gal, que é uma grande cantora, poderia alcançar mais e respondeu com a voz”, contou Robertinho em entrevista ao Jornal do Brasil em 1981.

Após a morte de Gal Costa, a versão da batalha que viralizou nas redes sociais foi a de Victor Biglione, que, aos 22 anos, em 1981, protagonizou um potente duelo sonoro com a cantora no auge dos seus agudos, aos 36 anos.

Em entrevista à BBC, o guitarrista, emocionado, disse que perder Gal era como perder “uma mãe” e que a inspiração para o duelo veio da banda de rock britânica Led Zeppelin. “Foi muito natural a gente reproduzir o que faziam Jimmy Page e Robert Plant”, contou Biglione, chorando.

Dos anos 1990 para cá, Gal Costa passou a cantarolar, a dialogar com a guitarra, em vez de desafiá-la. À medida que sua voz amadurecia e ficava mais grave, os duelos foram ganhando a suavidade dos anos bem vividos.

Em seus últimos shows, Gal não cantou Meu Nome É Gal. Em sintonia com os descaminhos do país, havia preferido encerrar o repertório das apresentações com Brasil, de Cazuza: Grande pátria/ Desimportante/ Em nenhum instante/ Eu vou te trair/ Não, não vou te trair… Gal Costa desprezava Jair Bolsonaro. “Ele é racista, homofóbico, grita com mulher. Ter ódio de um cara só porque ele é travesti é muito estranho. Talvez esse ódio seja uma atração”, alfinetou, em entrevista ao portal UOL ainda em 2018.

Gal “fez o L” desde o primeiro turno das eleições e escolheu o trabalhador, o Silva. Como era mesmo que dizia a letra da canção do proletário Erasmo, vendedor, office boy, faz-tudo em escritório de advocacia e finalmente músico profissional? “Não precisa sobrenome/ Porque é o amor que faz o homem”.

 

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Em tempo: um relatório produzido pelo youtube revelou que Meu Nome É Gal foi a faixa mais buscada após a morte da cantora, no último dia 9 de novembro.

 


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(5) comentários Escrever comentário

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Marcos Damasceno em 13/11/2022 - 18h47 comentou:

Emocionante!
Estou emocionado!
Muito obrigado querida Cynara.
Vou compartilhar.

Responder

Ademir Santos em 14/11/2022 - 07h32 comentou:

Belo texto, bela homenagem a essa que é a maior cantora. Parabéns.

Responder

Eugênio Bh em 14/11/2022 - 19h55 comentou:

Bom demais, le – gal demais

ler algo que fuja da mesmice funérea de quase todo este insuportável
universo da comunicação
zaptuiteira, laivista, (de “live”)
de achismos:
esse é o horror fascista.

ALGUÉM ESCREVE!
ALGUÉM LÊ!

Pois quase tudo o que se lê por aí na tal mídia livre não passa de referência àquilo que se evita
(FOLHA, ESTADO, GLOBO e etc.)

Quando alguém escreve, oh, que gozo!
Alô, Cynara, alô, Moisés Mendes,
e mais um bocado de gente fina:
Não se esqueçam de que sempre haverá quem os lerá…

Responder

    Cynara Menezes em 14/11/2022 - 21h47 comentou:

    obrigada!

Ademar Amâncio em 18/12/2022 - 16h28 comentou:

Lindo texto,descobri lendo uma matéria sobre a Gal no ”Farofa-fá”,de Pedro Alexandre Sanches.

Responder

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