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Trabalho

Miguel, Sari e Gilberto Freyre se encontram no elevador

Como a "democracia racial" se tornou uma das falácias preferidas das elites brasileiras

Manoel serve Magdalena e Freyre, o homem que influenciou gerações a adocicarem nossas relações raciais. Foto: reprodução,
Fabiana Moraes
10 de junho de 2020, 20h50

Gilberto Freyre está feliz. Sentado ao lado da esposa Maria Magdalena, ele toma seu café da manhã após passear entre mangueiras e jaqueiras no jardim da casa de Apipucos, bairro nobre recifense. Um homem negro de rosto magro, usando uniforme, serve o casal. É Manoel, “há muitos anos com a nossa família”, nos informa Freyre no filme O Mestre de Apipucos (1959), de Joaquim Pedro de Andrade. Pouco depois, aparece Bia, a cozinheira, que frita os peixes do almoço enquanto Freyre a observa. Coloca a mão no ombro da empregada, confere as postas no óleo e sorri, cordial. Bia ri de volta. “É sempre supervisionada por Magdalena”, nos informa o patrão.

Mirtes e sua mãe, Marta, estão sob o sol, suadas, usando máscaras. Ao fundo, vemos morros com casas miúdas construídas quase umas sobre as outras. Dão entrevistas sobre Miguel, 5 anos, que morreu após cair do nono andar de um edifício no qual duas gerações da família trabalhavam. Mirtes fala de Sari, sua empregadora. “Ela me dizia que ia ser presa e eu falava ‘mas por que? Se você não teve culpa?’”. Voltavam do hospital, o menino morto. Mirtes acreditava na inocência da patroa: as duas tinham, acreditavam, uma relação sem conflitos. A empregadora não se importava, por exemplo, quando a doméstica precisava levar o filho até a residência com vista para o mar e cerca de 240 metros quadrados. Ao menos, ele fazia companhia para a filha do casal.

E, afinal, Mirtes e Marta estavam há muitos anos na família.

Sari Gaspar Corte Real foi ao velório de Miguel ao lado do marido, Sérgio Hacker, prefeito de Tamandaré, balneário no Litoral Sul de Pernambuco. Viu o caixão branco miúdo ser levado pela família. Viu câmeras, repórteres, coveiros. Viu seu nome ser poupado pela imprensa e viu 20 mil reais a menos na conta ao pagar a fiança que a impediu de permanecer presa por homicídio culposo.

Sari empregava mãe e avó de Miguel, que foi ao elevador tentar alcançar Mirtes

Já Mirtes, à noite, viu as imagens do circuito interno do edifício. Seu filho está no elevador, Sari está fora, na porta. Há uma breve conversa. Ela, impaciente, aperta um botão e ele segue sozinho até chegar ao nono andar. De lá, passou a gritar pela mãe. Subiu na área dos condensadores de ar refrigerado e caiu 35 metros. “Se ela tivesse um pouquinho mais de paciência, se ela tivesse pego ele pela mão, ao invés de ficar só falando, pegasse ele pela mão e tirasse, meu filho hoje estaria comigo”, fala a mãe, quase delicadamente.

As duas custaram a acreditar que a mulher da qual cuidavam foi tão negligente com o menino que elas amavam. Mas as imagens do circuito interno do edifício mostraram a ambas –e ao país– como se dão, de verdade, as ditas relações cordiais entre empregadores e empregadas domésticas no Brasil.

As imagens do circuito interno do edifício mostraram como se dão, de verdade, as ditas relações cordiais entre empregadores e empregadas domésticas no Brasil. Esse mito, esse bicho tentacular, essa formidável mentira, foi gestada de onde falo, Recife

Esse mito, esse bicho tentacular, essa formidável mentira que até hoje nos atravessa, foi gestada de onde falo, Recife, capital que despertou em 1637 os desejos coloniais do holandês Maurício de Nassau, o conquistador que batiza o condomínio de luxo no qual Miguel morreu. O condomínio no qual Mirtes passeava com a cadelinha de Sari e Sergio e esperava –pacientemente– o animal fazer xixi e cocô enquanto seu filho a procurava.

Mirtes e Marta são muito próximas a Manoel e Bia, o empregado e a empregada de Freyre. São especialistas em garantir o tempo livre e a felicidade de seus patrões: os últimos colocavam a mesa, limpavam jardins, estendiam roupas e fritavam peixes enquanto o sociólogo dedicava-se a escrever também sobre afetuosas relações entre negros e brancos; Mirtes e Marta cuidavam da casa e mostravam-se sempre indispensáveis, tanto que continuaram a trabalhar mesmo durante o isolamento social e depois de seus patrões contraírem a Covid-19. Elas, delicadamente, também se infectaram.

A democracia racial sempre operou assim: um alto grau de servilismo é exigido pelos patrões, que, em troca, sorriem afetuosos para os empregados, colocam a mão nos seus ombros e, às vezes, conferem a eles a mais alta condecoração: ser quase “da família”. Ser quase brancos.

Mirtes quis ir à universidade e não conseguiu: passou a talhar para Miguel um futuro que não lhe foi possível

Freyre, o patrão de Manoel e Bia, figura como o mentor dessa ideia não por tê-la escrito em seus textos, mas porque influenciou pessoas como o médico alagoano Arthur Ramos. Até onde se sabe, o termo “democracia racial” foi usado pela primeira vez por ele em 1941, durante um seminário sobre a democracia no mundo pós-fascista (pois é). Em 1944, o sociólogo francês Roger Bastide empregou a expressão em artigo publicado no Diário de S. Paulo. No texto, fala justamente sobre uma visita ao velho casarão de engenho de Gilberto Freyre. No entanto, o sociólogo Antonio Sergio Guimarães aponta que, desde meados dos 1930, Freyre já falava em “democracia social” com o mesmo significado, e que, em 1943, utilizou a expressão “democracia étnica” em uma palestra.

O fato é que a tal festa sem tensões, repleta de gradações de tom de pele, tornou-se uma das falácias preferidas das elites brasileiras, tanto à direita quanto à esquerda. Serviu para o gozo, não só simbólico, de ambas. E, vivendo na mesma cidade na qual também moram Mirtes, Marta, Sari e Sergio, onde Miguel viveu durante apenas 5 anos, devo reconhecer: aqui, essa falsa mistura foi especialmente adocicada e internalizada.

A democracia racial sempre operou assim: um alto grau de servilismo é exigido pelos patrões, que, em troca, sorriem afetuosos para os empregados e, às vezes, conferem a eles a mais alta condecoração: ser quase “da família”. Quase brancos

Ela é vista na prática ainda recorrente de trazer mulheres negras e pobres do interior para servirem como empregadas domésticas. Morando longe, elas ficam mais tempo no trabalho e à disposição das famílias que as empregam.

É vista nos restaurantes aos domingos, quando é comum observar uma mulher, geralmente negra e de uniforme, carregando um bebê enquanto dois adultos, pai e mãe, geralmente brancos, almoçam tranquilamente.

É vista quando uma mulher adulta branca deixa uma criança negra sozinha em um elevador porque estava com pressa para escolher a cor do esmalte.

Também quando Sari diz a Mirtes que “foi sem querer” e Mirtes declara que não sente raiva no coração.

A pesquisadora, poeta e artista visual mineira Mariana de Matos, central para a discussão racial contemporânea no Brasil, passou quatro anos morando no Recife e me disse certa vez que nunca havia vivido em um lugar tão racista. “Não poderia ser diferente: vocês inventaram a democracia racial”. Ela está certa. Não faz muito tempo, estive em “casa grande” (é assim que a população chama o local) de uma família rica e tradicional do estado. Eram duas da madrugada e um empregado gerenciava nossa mesa, mantendo nossas taças cheias. Éramos apenas 5 pessoas e podíamos levantar e andar cerca de 12 passos até a cozinha para buscar uma garrafa. Mas ele não era dispensado. Fomos dormir. Antes das sete da manhã, ele estava de pé para “colocar a mesa do café da manhã”, uma verdadeira exigência de várias famílias pernambucanas, mesmo daquelas que não podem pagar 20 mil reais de fiança para permanecer em liberdade.

Essa falsa mistura é vista nos restaurantes aos domingos, quando é comum observar uma mulher, geralmente negra e de uniforme, carregando um bebê enquanto dois adultos, pai e mãe, geralmente brancos, almoçam tranquilamente

Nenhuma das famílias citadas nesse texto é um ponto fora da curva da sociedade recifense, laboratório para a bem sucedida experiência brasileira na qual fingimos que somos todos iguais. Gilberto Freyre não é o algoz que criou o racismo nacional, mas sim um poderoso divulgador de uma sociedade cuja violência racial era atenuada por cafunés. Aquele que falava sobre a existência das boas e muitas vezes safadas relações entre escravocratas e escravos a partir do seu alpendre cercado de mangueiras e jaqueiras, onde estupro era visto simplesmente como sexo.

O que foge à curva no caso de Miguel, Mirtes e Marta, é que o menino morreu e já não pode fazer companhia para a filha pequena de Sari e Sérgio. Não vai esperar a mãe limpar delicadamente o cocô da cadelinha da empregadora enquanto brinca na sala com vista para o mar.

Miguel morreu e com isso expôs o circuito interno de imagens de um edifício batizado com o nome de um conquistador holandês. Nesse registro histórico, vemos um encontro que nunca será esquecido: um elevador ocupado pelo menino, por Mirtes e Marta, por Sérgio e uma cadelinha. Freyre está no canto, afetuoso. Lá fora, Sari sorri de volta e aperta o botão para o 41º andar.

*Texto originalmente publicado por Fabiana Moraes na Newsletter dos Aliados da Agência Publica

 


(7) comentários Escrever comentário

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César Antônio Ferreira em 10/06/2020 - 23h23 comentou:

Roger Bastide não era sociólogo, mas antropólogo. O conceito de “entrecruzamento cultural” é dele.

Outra coisa: estupro é estupro, sexo é sexo.
O primeiro envolve violência e/ou imposição pela força e/ou reconhecimento explícito da presença da força na forma autoritária. O segundo é consentido, mesmo que envolva discrepância extrema de classes sociais.

Considero o presente texto necessário.
Saudações.

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TANIA REGINA R DA SILVA em 11/06/2020 - 04h21 comentou:

Quanta leveza e sensibilidade, para abordar essa temática tão grotesca e pesada. Parabéns!

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Lucas em 11/06/2020 - 15h42 comentou:

No nordeste ainda impera o coronelismo. Rege as relações sociais e políticas. Não é à toa que lá ocorreu o fenômeno do cangaço. Não é à toa também que uma multidão de refugiados vem para o sudeste há quase um século.

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Wil em 11/06/2020 - 20h01 comentou:

Como responder um texto essencialmente sobre o preconceito, sendo absurdamente preconceituoso. Esperemos mais dicas do autor.

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Oswaly em 12/06/2020 - 10h28 comentou:

Vi cenários grotescos de racismo no carnaval de Olinda e nas praias do sul de Pernambuco, no município de Tamandaré. Cenas tais quais Sobrados e Mocambos ou o elevador do texto acima. Negros e índios tristes e sofridos servindo brancas e brancos sorridentes dançando frevos e maracatus. Mas vi também no Rio de Janeiro, Petrópolis, em Ouro Preto e Belo Horizonte, no interior de São Paulo, Floripa, Curitiba… Não é invenção do Nordeste. Cuidado com a xenofobia amigo Lucas. Ela também ronda silenciosa nossos palácios de cristal

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fabiana moraes da silva em 16/06/2020 - 13h12 comentou:

bastide era sociologo: https://revistapesquisa.fapesp.br/as-artes-de-roger-bastide/

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Tatiana Portela em 22/06/2020 - 08h58 comentou:

Excelente abordagem e muito bem escrito. Parabéns!

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