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O bolsonarismo matou nosso “amor à camisa”; será que tem volta?

Oxalá algum dia a gente possa beijar a camiseta canarinho novamente sem associá-la a um movimento político putrefato. Quem sabe em 2026?

Richarlison beija a camiseta no jogo contra a Sérvia. Foto: Lucas Figueiredo/CBF
Cynara Menezes
20 de dezembro de 2022, 16h28

No domingo, 18 de dezembro, logo após a vitória da Argentina na Copa do Mundo do Qatar, uma camiseta gigante da seleção foi desfraldada na fachada do Teatro Colón, em Buenos Aires, já com as três estrelas correspondentes ao tricampeonato. Os argentinos nunca esconderam o orgulho de ostentar o uniforme azul celeste e branco e isso não mudou, independentemente de quem tenha ocupado o poder, esquerda ou direita.

Confesso que invejei. Nós, brasileiros, não podemos dizer o mesmo sobre a camiseta da seleção desde que a extrema direita sequestrou a canarinho, como se ela pertencesse não a todos, mas a uma tendência política homofóbica, misógina, racista e defensora da ditadura militar. É possível afirmar que a maioria dos 60 milhões que elegeram Lula olham hoje a camiseta amarela de gola e punhos verdes com desprezo, ódio e, por que não dizer?, com repugnância.

Vestir a canarinho virou sinônimo de pagar mico: o “patriota do caminhão” vestia a camiseta; os aloprados que oravam diante do muro do quartel também; o cara que gritava “socorro” a soldados, idem. Quem quer se arriscar a ser confundido com um mané desses?

O uso político das camisetas da seleção remonta às manifestações de junho de 2013, quando elas começam a ser vistas na rua associadas a protestos antiesquerda. A antipatia de parte da torcida pela camiseta se intensifica na Copa de 2014, quando torcedores vestidos de verde e amarelo xingam uma mulher, mãe e avó, presidenta da República, em um estádio de futebol, para o mundo inteiro ver. Os protestos que resultariam no golpe contra Dilma Rousseff dois anos depois teriam figurino idêntico.

Azarão da extrema direita na disputa ao Planalto em 2018, Jair Bolsonaro logo percebeu a utilidade da camiseta para seu discurso nacional-fascista e reforçou o apelo para transformá-la em símbolo do patriotismo de araque que incorpora. De lá para cá, o uso político da camiseta da seleção pela extrema direita veio num crescendo, a ponto de, em agosto, o presidente da República “denunciar” que seus adversários iriam passar a usar verde e amarelo na campanha presidencial, como se as cores fossem propriedade dele e de sua gente.

Quantos amigos e amigas vocês ouviram dizer, nesta Copa, que não usariam “de jeito nenhum” a camiseta canarinho porque passaram a sentir ojeriza por ela? A identificação do bolsonarismo com o uniforme da seleção se tornou tão grande que deu lugar a um temor generalizado, entre quem não é bolsominion, de ser confundido com um apoiador do presidente apenas por usá-la. Não à toa, no comércio popular aumentou a procura pelo modelo azul do uniforme em detrimento do amarelo. Versões alternativas da camiseta em outras cores também circularam, inclusive vermelha.

Imagina se algum político argentino iria conseguir sequestrar a camiseta. Os torcedores não permitiriam. Os craques de lá não permitiriam. Os daqui permitiram; nosso camisa 10 chegou a declarar voto no extremista de direita que ocupa a presidência

Vestir a amarelinha virou sinônimo de pagar mico e virar meme: as cenas mais dantescas das manifestações golpistas que estão até hoje acontecendo diante de quartéis do Exército foram protagonizadas por imbecis envergando a camiseta da seleção. O “patriota do caminhão” vestia a camiseta canarinho; os aloprados que oravam diante do muro de um quartel pedindo intervenção militar, também; o cara que gritava “socorro” aos soldados, idem, assim como as mulheres daquele jogral tosco. Quem quer se arriscar a ser confundido com um mané desses?

A rejeição à camiseta da seleção pela torcida chegou a um ponto tal que a própria CBF se viu obrigada a lançar uma campanha publicitária, às vésperas da Copa do Mundo, para tentar fazer os brasileiros se sentirem atraídos por ela novamente.

Patrocinadores da seleção, como a Brahma, a Nike e a Kavak fizeram o mesmo movimento de tentar dissociar a camiseta da ideologia de quem a veste.

E até a campanha eleitoral de Lula foi por este caminho de tentar desvincular a camiseta e as cores verde e amarelo do bolsonarismo.

Pelo visto não funcionou. A Copa do Mundo acabou, a Argentina venceu e os bolsonaristas mais lunáticos continuam nas ruas fazendo presepadas, envergando e envergonhando a camiseta da seleção –para a qual nem torceram, aliás. Chamou a atenção durante a Copa que os “patriotas” tenham demonstrado fidelidade ao “mito”, mas não ao próprio time dono do uniforme, o que indica que o uso da camiseta pelos apoiadores do presidente é inclusive insincero, falso.

Os bolsonaristas que estão na frente dos quartéis afirmam que usam a camiseta porque “amam o Brasil”, mas no fundo gostariam de exibir é aquela que Eduardo, filho do presidente, exibiu para o público em 2018. Sorridente, o deputado federal aparece numa foto nos corredores da Câmara prestando homenagem ao torturador Brilhante Ustra, da mesma forma que seu pai havia feito durante a votação do impeachment de Dilma. Se os bolsonaristas fossem sinceros, andariam com a camiseta de Ustra e não com a da seleção.

A camiseta bolsonarista “sincera”. Foto: reprodução facebook

É triste constatar, mas o bolsonarismo conseguiu destruir o “amor à camisa” que tínhamos desde os tempos de Mané Garrincha e Pelé –até 1953, o uniforme da seleção era branco; naquele ano foi realizado um concurso para escolher a nova camiseta e a partir daí ela passou a ter a cor amarela. A mudança foi considerada necessária para rebater o desapontamento do brasileiro com a derrota da seleção para o Uruguai em casa, três anos antes. Além disso, a cor branca era considerada “inexpressiva” diante das cores pujantes de nossa bandeira. Ganhamos os cinco títulos mundiais usando a canarinho.

Esta falta de amor à camisa parece se refletir na quase total ausência de paixão dos jogadores da seleção em campo: uma torcida desapaixonada produz jogadores sem gana, sem garra –e vice-versa. À exceção de Richarlison, o único a ser flagrado beijando a camiseta canarinho após marcar o gol mais bonito da Copa do Mundo, na partida de estreia contra a Sérvia, quase não se viu emoção em campo.

A cena de Neymar amarrando o cadarço da chuteira com o jogo já começado, em plena estreia, foi emblemática: estávamos diante de jogadores displicentes, descompromissados com a seleção. Interessados em fama, fortuna e carne regada a ouro. Sem amor à camisa.

Tudo ao contrário dos argentinos. Desde a arquibancada até o campo, desde os jogadores atuais até os ex-craques, como bem observou Casagrande, os hermanos demonstraram raça, paixão, vontade de vencer. Ganharam porque acreditaram. E olha que haviam estreado com uma derrota, levando 2 a 1 da Arábia Saudita.

A diferença da relação dos argentinos com sua camiseta pode ser exemplificada com um vídeo que viralizou após a vitória. Torcedores encontram um carroceiro de material reciclável em uma esquina de Buenos Aires, dão a camiseta do Messi para ele e depois o abraçam e celebram juntos. É inimaginável que os bolsonaristas de verde e amarelo protagonizassem algo similar, a não ser para utilizar o carroceiro em alguma narrativa do tipo: “Olha, ele é pobre e votou em Bolsonaro”.

Invejo a paixão dos argentinos pelo uniforme da seleção porque nós tivemos este sentimento um dia e o perdemos. Imagina se, na Argentina, algum político iria conseguir roubar da torcida a camiseta azul celeste e branca como fizeram aqui com a verde e amarela. Os torcedores não permitiriam este sequestro. Os craques argentinos não permitiriam. Maradona não permitiria. Messi não permitiria. Os daqui permitiram; nosso camisa 10 chegou a declarar voto no extremista de direita que ocupa a presidência.

Oxalá algum dia a gente possa voltar a beijar essa camiseta novamente sem associá-la a um movimento político putrefato, que felizmente está de partida. Quem sabe em 2026 não volte a paixão dos torcedores pela camiseta e a dos jogadores pela seleção? Ou será que é preciso fazer um novo concurso para mudar o uniforme?

 


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(2) comentários Escrever comentário

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Eugênio Bh em 20/12/2022 - 19h41 comentou:

“Será preciso um concurso para mudar a camisa da seleção brasileira novamente”,

talvez esse pudesse ser o título dessa belezura de crônica.

Seria compridão, mas já seria uma solução pra este nem tão vasto mundo.

Em tempos publicitários, convoquem-se estilistas a rodo, a torto e (não!) à direita.

Recalcitrante: o escudo da CBF, obrigatório, já bole com qualquer arte e vergonha na cara.

O problema: amarelo é cafona pra burro. Prum time de futebol pode até não ser, mas…

Para além disso, é cor de OURO e, como diz Nelson Rodrigues, só os profetas enxergam o óbvio.

Nada mais roubado, sequestrado, desejado e vilipendiado do que isso, pois sim!

Do verde, IDEM e nem se fala, taí o desastre todo em todo canto.

Fumaça.

Que seja azul, ora bolas, o insequestrável (por enquanto) brilho do céu e do mar.

Tipo assim: Messi, Le Bleus, Grêmio, Cruzeiro.

E assim seja, amém.

Responder

Loira Capitalista em 26/12/2022 - 20h26 comentou:

Parabéns a seleção Argentina !
Os esquerdistas/ Kirchneristas/Peronistas também quiseram se aproximar da vitoriosa seleção para tirar uma casquinha para o atual deplorável governo argentino. Os jogadores os deram o pé na bunda dos políticos e nem se aproximaram da Casa Rosada para uma foto.

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