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Por que os catalães lutam por um referendo sobre a independência

E como o governo da Espanha, de direita, já está usando a força para impedir que a consulta popular, marcada para 1º de outubro, se concretize

Manifestantes independentistas com as bandeiras da Catalunha e da União Europeia. Foto: Junts Pel Si
Ricard Chulià Peris
19 de setembro de 2017, 17h57

Em 11 de setembro de 2017, um milhão de catalães saíram às ruas de Barcelona. Não foi um fato isolado. No ano anterior aconteceu o mesmo. E no anterior também. Mais um milhão em 2014. Em 2013, os catalães formaram uma corrente humana da fronteira com o Estado francês até chegar à fronteira Sul com o País Valenciano. Nada menos que 400 quilômetros de pessoas a darem-se as mãos. E até hoje não houve violência. Nada. Não existe na história europeia um caso de um movimento popular pacífico que todo ano convoca às ruas mais de um milhão de pessoas.

O que é que os catalães reivindicam? A Catalunha é uma antiga nação europeia. Tem uma história, uma cultura e uma língua próprias. As instituições catalãs foram abolidas em 1714, depois de uma guerra. O dia 11 de setembro é o Dia Nacional da Catalunha, ou Diada, mas nele se comemorava a derrota de Barcelona: a queda diante das tropas do rei. Atualmente, representa a vontade de autogoverno dos catalães que a história não pôde apagar. Porque, de fato, além dos argumentos históricos, que hoje não ocupam muito espaço no debate político, o que move a rebelião catalã é a vontade democrática de construir um Estado.

A Espanha nunca reconheceu sua pluralidade nacional. Não reconhece a existência dentro dela de nações diferentes, como a basca, a galega, a catalã. No século 20, a ditadura de Francisco Franco foi brutal e atacou os direitos democráticos e sociais de toda a população, ao mesmo tempo que proibia o uso de línguas diferentes do castelhano. Foi uma guerra contra a democracia, mas na Catalunha também foi una guerra para impor uma identidade espanhola e centralista contra a identidade do povo, a identidade catalã. O movimento independentista catalão reivindica que a transição da ditadura para a democracia na Espanha foi incompleta e se cansou de esperar uma evolução que nunca chega.

A Espanha nunca reconheceu sua pluralidade nacional. Não reconhece a existência dentro dela de nações diferentes, como a basca, a galega, a catalã

Em 2006, a Catalunha votou uma reforma do Estatuto de Autonomia, a norma que regula o autogoverno. O texto foi aprovado pelo Parlamento catalão e pelo povo da Catalunha em referendo. Mas os partidos políticos espanhóis alteraram e esvaziaram o nível de autogoverno. Em 2010, o Tribunal Constitucional –recusado por partidismo: os magistrados são eleitos pelo Partido Popular ou pelo Partido Socialista, as duas formações do bipartidismo espanhol– anulou os artigos mais ambiciosos do Estatuto. O reconhecimento da Catalunha como nação foi abolido. A cidadania catalã sentiu-se enganada e fraudada. Sentiu-se expulsa do Estado, que não respeitava o Estatuto que votaram em referendo e que o seu Parlamento negociou e aprovou. Todos os analistas destacam este acontecimento como o que deu começo para a rebelião catalã atual. As aspirações catalãs já não cabiam no sistema institucional espanhol e, portanto, a única via que restava era a independência.

O principal partido político catalão –Convergència i Unió, CiU–, regionalista, mudou o seu discurso para o independentismo e, junto com os independentistas social-democratas (Esquerra Republicana de Catalunya, ERC) e os comunistas (Candidatura d’Unitat Popular, CUP), conseguiram uma maioria independentista no Parlamento catalão. Ao mesmo tempo, o sistema de partidos mudava e a ERC se tornava o partido mais votado.

As forças catalãs concordavam que a solução para a crise de legitimidade democrática passava pela celebração de um referendo sobre a autodeterminação, uma tese que tem o apoio –segundo todas as pesquisas– de 80% dos catalães. Mas a resposta do governo espanhol foi a negação: um referendo não pode ser realizado. O referendo é ilegal, mas também não é possível mudar as leis para possibilitar o referendo.

As forças políticas catalãs não renunciaram a seu mandato democrático e, em 9 de novembro de 2014 (o 9N), houve una consulta não vinculante da qual participaram mais de 2 milhões e meio de catalães, apesar de ter sido proibida pela Justiça espanhola. Nas eleições ao Parlamento da Catalunha de 2016 as forças independentistas conseguiram a maioria absoluta com um programa de governo defendendo a construção da República Catalã.

O governo catalão continuou apelando ao diálogo para fixar as condições para um referendo de autodeterminação da Catalunha segundo os modelos da Escócia e de Quebec, mas, mais uma vez, se chocou contra o muro do governo e das forças políticas espanholas, que recusam a celebração de um referendo. Não havia possibilidade de acordo e o governo catalão não podia violentar o mandato que tinha recebido do povo para construir uma República.

Assim, o governo catalão convocou a cidadania a pronunciar-se num referendo –desta vez, ao contrário do 9N, vinculante– para o qual aprovou a lei no próprio Parlamento da Catalunha e que terá lugar em 1º de outubro de 2017. A pergunta é clara: “Quer que a Catalunha seja um Estado independente na forma de República?”. Sim ou não?

Como o governo da Espanha pode evitar a votação? Só usando a força. Já há quem já peça ao exército espanhol para ocupar a Catalunha

A resposta do governo espanhol não mudou. Não havia lugar para o diálogo político. Não havia lugar para concordar com a votação. Mas agora, convocado o referendo, vem a repressão do Estado. 700 prefeituras catalãs (75% do total) foram ameaçadas pela Justiça espanhola por colaborar com a celebração do referendo, cedendo espaços públicos. A polícia espanhola investiga gráficas catalãs por estarem imprimindo as cédulas de votação. A informação institucional sobre o referendo foi banida da mídia catalã, e os comícios independentistas, proibidos. O autogoverno catalão foi suspenso de facto com a intervenção do departamento de Economia do gabinete de Mariano Rajoy, do direitista PP. O governo espanhol repete que o referendo não acontecerá, mas o governo catalão não aceita e prossegue com a organização da votação.

Como o governo da Espanha pode evitar a votação? Só usando a força. Já há quem esteja pedindo ao exército espanhol que ocupe a Catalunha. Nesta segunda-feira, um grupo de 400 professores universitários espanhóis divulgaram uma carta contra o referendo em que literalmente endossam o “uso da força legítima” pelo Estado. Mas isso é possível na Europa de 2017? O povo catalão não claudica: “queremos votar” e “não temos medo” são as palavras que as pessoas repetem enquanto imprimem, em casa, os cartazes que o governo espanhol tem proibido e confiscado dos partidos e organizações.

A rebelião catalã é uma oportunidade para os povos da Europa e do Mundo. É a prova de que a democracia é mais forte do que os poderes não-legítimos que usam a força contra a vontade do povo, quer sejam financeiros, quer sejam militares. Não existe na Europa um movimento democrático maior do que o catalão. A sua vitória é a vitória dos democratas do mundo todo.

Ricard Chulià Peris é jornalista 

 

 

 


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Policarpo em 20/09/2017 - 00h10 comentou:

Devagar com o andor que o santo é de barro. Nacionalismo na Europa não tem nem de longe o sentido que tem nos países do terceiro mundo que lutaram, por exemplo, pela descolonização na África ou contra algum tipo de imperialismo, como na América Latina, ou ainda o sentido da luta pela industrialização e o desenvolvimento em todos os países do “Terceiro Mundo”, como se dizia antes de 1989.
A Catalunha, como de resto o País Basco, é um “estado” dos mais ricos (mais industrializados, com menores taxas de desemprego e com melhores indicadores de desenvolvimento econômico e social de toda Espanha). O estranho formato “federativo” chamam-se aqui comunidades autônomas e foram criados pela Constituição Democrática de 1978 que reconhece e garante o direito à autonomia das nacionalidades, regiões e línguas que compõem o Estado espanhol, o Reino de Espanha (sim esse pais é um “reino”, como outras monarquias parlamentarista da Europa).
O atual problema da Catalunha é resultado de dois tipos de oportunismo. Primeiro dos independentistas, um saco de gatos, que vai da corrupta direita que sobrou da antiga Convergència y Unió (CyU), passando pela Esquerra Republicana (socialista, que ali quer dizer na prática social democracia, não pense nos tucanos que ali seriam a direita mesmo) e terminando nos anti-capitalista da CUP. CyU y Esquerra já se encontraram e se desencontraram em muitos momentos políticos em coalizões no Parlamento Catalão. Até muito pouco tempo atrás uma união dessas três forças seria bastante improvável. Todos se aproveitaram dessa bandeira da independência para engrossar o número de seus votantes e a representação nos Parlamentos (Alcades, Consistorios, concejales, mais ou menos o que seria nossos prefeitos e câmaras municipais). Em segundo, lugar os anti-independentistas, que vivem do mesmo negócio mas no sentido contrário, de garantir o atual ordenamento estatal e o sistema tal qual montado na Transição pós Franquista. Basicamente, mas não exclusivamente, o Partido Popular, uma direita bastante reacia em todos os sentidos. Aqui o que seria uma questão puramente “federativa” toma contornos de uma grande questão devido a uma série de as antigas cicatrizes conseguidas ao largo de sua longa história política que remonta a Guerra Civil e se extende conforme o gosto e as preferências de quem as vê até onde a memória histórica pode alcançar.
É claro que o atual domínio do Partido Popular com seu discurso e prática intransigente, joga muita água nos baldes dos independentista, mas sem dúvida há uma vontade honesta e desinteressada de parte da sociedade catalã em abandonar a Monarquia e adotar a República como regime político legítimo (e portanto o republicanismo, que não é exclusivo de Catalunha ou do País Basco, mas de toda a Espanha acaba aproveitando da força desses movimentos independentistas e de luta contra o que se costuma definir como o Regime político da transição marcado pelo predomínio das duas principais forças políticas da Espanha, o centro esquerda do PSOE e a centro direita do PP, ambas bastante bem assentadas no estabilishment espanhol. (Podemos se refere a eles como a casta).
Para finalizar, uma realidade bastante complexa, com muitas cores e tonalidades, longe da facilidade do bom mocismo e dos maniqueísmo, como colocados no texto, e estranhamente tão comuns no nosso triste país.

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Mislene Sousa em 20/09/2017 - 21h55 comentou:

Pois é Policarpo!! Bom saber que há pessoas que fazem análises para além do maniqueísmo simplório, que infelizmente o texto abordou. A questão é muito mais complexa e há atores distintos nesse “saco de gatos”. O movimento separatista é oportunista e burguês, por excelência. O franquismo é uma muleta que os catalães usam, mas o “generalíssimo” ferrou a todos os espanhóis, catalães, bascos É andaluzes. Estes últimos os próprios catalães os chamavam de mortos de fome..um claro exemplo de preconceito e xenofobia.

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