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Trabalho

Precarização em duas rodas: pedalar 10 horas/dia para ganhar menos que o mínimo

Estudo sobre entregadores ciclistas de aplicativo em SP aponta um perfil médio jovem, negro, ensino médio completo e desempregado

Dionizio Bueno
12 de novembro de 2019, 17h10

Sentado em cima da bicicleta, no meio de uma aglomeração de outros meninos e bicicletas, no canto de uma rua movimentada, Jorge olhava fixamente a tela do telefone, esperando o aplicativo tocar. Já era mais de 21h, ele estava logado desde as 11 da manhã e se sentia animado para pedalar mais um pouco. Era o último dia do mês, ele acabava de atingir a média mensal de ganhos, poderia estar satisfeito. Mas fez uma conta rápida: se tocasse para ele mais uma entrega de 6 reais, ele fecharia aquele mês com ganho igual a um salário mínimo. Poderia ir para casa sentindo-se privilegiado.

Jorge tem 20 anos, é negro, tem ensino médio completo e estava desempregado até o mês passado. Trabalha entre nove e dez horas por dia, sete dias por semana, e ganha em média 992 reais por mês. Jorge é um personagem criado por esta coluna para dar forma, ainda que ficcional, ao entregador ciclista de aplicativo típico, segundo dados do Perfil dos entregadores ciclistas de aplicativo, feito pela Associação Brasileira do Setor de Bicicletas – Aliança Bike. A pesquisa entrevistou 270 entregadores na cidade de São Paulo com o objetivo de traçar um perfil sociodemográfico desses profissionais e diagnosticar as principais condições de trabalho que eles enfrentam.

Lucimeire Peres, 34 anos, pedala fazendo entregas por meio de aplicativos há cerca de 11 meses. Tem duas filhas, está em vias de concluir a graduação em Enfermagem e, no momento, está juntando dinheiro para prestar o exame do conselho da categoria e também para comprar as roupas e os utensílios básicos para o exercício da profissão.

A pesquisa “Perfil dos Entregadores Ciclistas de Aplicativo” entrevistou 270 entregadores na cidade de São Paulo para traçar um perfil sociodemográfico desses profissionais e diagnosticar as principais condições de trabalho que eles enfrentam

Rodrigo Ribeiro, 19 anos, faz entregas de bicicleta há mais de um ano. Já chegou a trabalhar 7 dias por semana, mas hoje não faz mais isso. Tira uma folga semanal, mas jamais em fim de semana, quando é possível obter maiores ganhos. Tem vontade de trocar a bicicleta por uma moto assim que conseguir, e atualmente está tirando a habilitação.

Lucimeire e Rodrigo não são personagens fictícios. São entregadores de verdade com famílias, histórias, limites físicos e contas para pagar. Para as empresas donas dos aplicativos, porém, são meros registros dentro de um gigantesco banco de dados, com milhares de trabalhadores disponíveis para fazer exatamente a mesma coisa que eles.

Nessas condições, sob a permanente ameaça da substituição, melhor seguir as recomendações que todo mundo conhece e repete sobre como agradar o algoritmo, sejam elas lendas ou verdades: ter regularidade no horário de trabalho, ficar disponível por longos períodos, evitar ao máximo recusar pedidos, sair imediatamente assim que recebe uma missão. Comportamentos que desagradem o sistema, que tudo sabe, resultarão no rebaixamento do seu score, e você será naturalmente substituído por outra pessoa sem que ninguém tome conhecimento ou responsabilidade por essa decisão. Afinal seria esquisito considerar o algoritmo como ‘alguém’.

Ilustra: Eneko

O número de trabalhadores cadastrados nesses aplicativos não para de aumentar, o que é excelente para as empresas: a abundância na oferta de mão de obra provoca a queda do valor de troca da força de trabalho. Com o aplicativo, qualquer um pode se alistar em poucos minutos nesse enorme exército de reserva digital, que mantém o valor da mão de obra em níveis cada vez mais baixos.

“Antes tinha muita promoção: faça quatro entregas e ganhe tanto. E era um valor que compensava”, conta Rodrigo recordando dos primeiros meses em que começou a trabalhar com os aplicativos. “Hoje tem menos. Somente em dia de chuva ou horários com muitos pedidos. E o valor é menor”. Como qualquer promoção, trata-se de um benefício temporário para atrair negócios e estimular hábitos. Vigora somente pelo tempo que interessar à empresa. Além disso, promoções servem para mascarar alterações bruscas no valor de um bem ou serviço. Se o valor mudar de uma hora para outra, e alguém for reclamar, a resposta está pronta: “Ah, mas aquilo era promoção, o valor que vale é este”.

Recomendações para agradar o algoritmo: ser regular no horário, ficar disponível, evitar recusar pedidos, sair imediatamente ao receber uma missão. Comportamentos que desagradem o sistema resultarão no rebaixamento do score e você será substituído

Mesmo nessas condições precárias de trabalho, com ganhos em queda e praticamente nenhum direito trabalhista, os aplicativos de entregas aparecem como uma grande oportunidade para muita gente. Oferecem uma solução rápida e efetiva para a situação de desemprego. Prometem início praticamente imediato, sem submeter as pessoas ao tão temido processo seletivo, fonte de ansiedade e frustração na vida da maioria dos trabalhadores, sobretudo os iniciantes. Conforme o Perfil dos entregadores, as principais vantagens que eles veem nos aplicativos são o “emprego rápido, sem processo seletivo” e a “flexibilidade de horário” (mencionadas, respectivamente, por 31% e 30% dos entrevistados).

A possibilidade de trabalhar somente em certos horários, encaixando as entregas onde a agenda diária permite, é também um forte apelo para eles. Lucimeire vê no trabalho com aplicativos a chance de dar conta também de outras demandas de sua vida: “As entregas, eu organizo do meu jeito. Tenho minhas duas filhas, meu curso e outras coisas que faço. Muita gente que trabalha com entregas é assim”. Rodrigo prefere dosar a quantidade de trabalho a adotar uma jornada integral: “Trabalhando como autônomo, eu posso fazer uma entrega, parar, fazer outra, parar. Se trabalhar com empresa [em regime CLT], é oito horas por dia, segunda a sexta”.

Ilustra: @PatoMena

Porém, a prestação de serviços por meio de aplicativos é uma forma de trabalho que tira do jogo praticamente todos os direitos trabalhistas conquistados historicamente, como descanso semanal remunerado, 13º salário, férias remuneradas, adicionais para as horas trabalhadas à noite ou além da jornada estabelecida, afastamento temporário remunerado por motivo de saúde ou acidente, alimentação durante a jornada de trabalho, adicional de periculosidade. Há, apenas em algumas empresas, um seguro saúde ou seguro de vida para o entregador.

Estamos diante de uma relação de trabalho camuflada por trás de um novo agente mediador, o aplicativo. É tão bem camuflada que inclusive possibilita às empresas de aplicativos alegarem que, na verdade, são os entregadores que utilizam os serviços delas para ter acesso às entregas e poderem se sustentar. Nessa visão, os entregadores passariam à condição de clientes dos aplicativos. O meio jurídico parece ainda distante de um entendimento da questão. “A justiça do trabalho tende a não reconhecer vínculo empregatício, entendendo que profissional é autônomo”, afirma Kristofer Willy, advogado especializado em direito trabalhista, que vem acompanhando de perto a situação dos entregadores de aplicativos.

A prestação de serviços por meio de aplicativos tira praticamente todos os direitos trabalhistas, como descanso semanal, 13º salário, férias, adicionais noturnos ou extras, afastamento remunerado por saúde ou acidente, alimentação, adicional de periculosidade

“Existe sim uma relação de dependência da empresa: o entregador recebe determinações, não pode escolher pedido, recebe pagamento pelos serviços prestados. Existe poder diretivo. Um caminhoneiro autônomo recusa um frete, se quiser. Se um entregador recusar entregas, em pouco tempo estará bloqueado no aplicativo ou terá seus pedidos diminuídos. Dentro da relação de subordinação, [a empresa] decide onde o cara vai trabalhar. Uma empresa de ônibus determina que o funcionário motorista vai fazer, por exemplo, a linha São Paulo-Sorocaba. Com aplicativo é a mesma situação”, conclui o advogado.

É possível tentar defender na Justiça a existência de um vínculo empregatício, como forma de obter acesso aos direitos trabalhistas, e há até casos em que o trabalhador ganha em primeira instância. Porém, havendo recurso da empresa, é comum que o vínculo não seja reconhecido na segunda instância. Segundo Willy, isso está relacionado a características sociais do próprio Judiciário. “Na vara você tem um juiz mais novo, mais próximo da realidade do trabalhador. No tribunal de segunda instância, o colegiado é formado por juízes mais velhos, que analisam com outros olhos e tendem a não reconhecer o vínculo. Estes juízes não têm contato com as partes, apenas analisam o que foi apresentado no processo”.

Ilustra: Eneko

Mas parece que nem a possibilidade de ter direitos é atrativa o suficiente para que esses trabalhadores e trabalhadoras desejem um contrato CLT. Questionada quanto à possibilidade de trabalhar com carteira assinada, Lucimeire tem uma posição bastante clara: “No momento eu não iria. Em CLT, você tem que fechar um horário que geralmente é grande, todos os dias, uma folga só, que geralmente não é no fim de semana. Na verdade, a gente não quer ter o compromisso da CLT”.

Rodrigo tem uma visão semelhante. “Nessa empresa eu vou ter que ficar 8 horas ali, ó, andando o que ela mandar. E manda pra longe. Os caras rodam sem parar em oito horas de trabalho. Outro dia soube de um cara que tinha pedalado duzentos e setenta e poucos quilômetros. Isso aí pra mim não dá não. Isso aí é sacrificar a alma todinha pra ganhar 1.200 no mês”. Mesmo com suas desvantagens, o trabalho por aplicativos acaba respondendo a uma real e justa demanda das pessoas por uma jornada de trabalho mais razoável.

Há também um elemento ideológico atuando na escolha dos milhares de profissionais que preferem os aplicativos. Conforme observa Willy, “é vendido esse discurso de que você é empreendedor. Contam a história de que Fulano era pobre até alguns meses atrás mas agora é empreendedor, com possibilidade de se tornar milionário sem receber ordens”.

Na ideologia do empreendedorismo, o trabalhador se vê não como um indivíduo que vende sua força de trabalho, mas como uma empresa que presta serviços para outra empresa. No vídeo acima, a professora Marilena Chauí faz uma análise assustadora de como o discurso do empreendedorismo, hoje um elemento central da ideologia neoliberal, “corrói por dentro a classe trabalhadora”. A perda da referência de categoria profissional fica bem demonstrada no que está acontecendo com os entregadores de aplicativo. “Eles realmente acreditam que são empreendedores. É difícil convencer esses meninos de que eles são empregados. Eles se sentem mais livres sem o patrão”, completa o advogado.

Com essa crença, fica bastante difícil sindicalizá-los, o que seria um caminho para retomar direitos e melhorar as condições de trabalho. Na aglomeração de entregadores sentados nas bicicletas esperando tocar um pedido, a pessoa, ou melhor o empreendedor ao lado é antes um competidor, um concorrente, do que um colega de profissão, um companheiro de classe laboral.

Nem a possibilidade de ter direitos é suficiente para esses trabalhadores desejarem ser CLT. “Eles realmente acreditam que são empreendedores. É difícil convencer esses meninos de que são empregados. Se sentem mais livres sem o patrão”, diz o advogado Kristofer Willy

O aplicativo de entrega é um recurso que produz uma nova lógica nas relações de trabalho. Abre a possibilidade de uma intrigante troca de papéis, na qual empresas de entregas podem alegar que os entregadores, aqueles que efetivamente executam sua atividade-fim, são na verdade seus clientes. Forma-se uma situação em que o trabalhador é detentor dos meios de produção (a bicicleta, a bolsa térmica e o telefone), é responsável pelos custos de sua aquisição e manutenção e, ainda assim, se encontra sujeito a uma exploração praticamente sem limites. Entregadores, manicures, faxineiros, babás, esteticistas, pintores, cozinheiros e cada vez mais profissionais estão nesse processo, conhecido como uberização, passando a estar sujeitos a essas condições de trabalho.

Jorge, o nosso personagem fictício, faz parte de uma categoria profissional em franco crescimento mas, ainda assim, tende a um lugar de invisibilidade social: por parte dos clientes, para os quais é apenas o canal através do qual a refeição chega do restaurante até a porta de casa; por parte dos estabelecimentos comerciais, mais preocupados em despachar logo o pedido porque a fila hoje está grande; por parte das empresas, que se relacionam com esses trabalhadores e trabalhadoras por meio de ferramentas de banco de dados e com quem praticamente inexiste contato pessoal; por parte dos gestores públicos, para os quais nem a crescente importância da ciclologística nas cidades é motivo para levarem mais a sério as questões de infraestrutura para bicicletas e de segurança viária.

As tecnologias digitais, aliadas à predisposição da maioria das pessoas em fornecer gratuitamente a qualquer empresa seus dados pessoais, hábitos de consumo e padrões de deslocamento no espaço, criam a possibilidade de conectar oferta e demanda por produtos e serviços de uma forma nunca antes vista na história da humanidade. Elas de fato resolvem problemas e, para o usuário, isso geralmente é a única coisa que importa. Assim, os aplicativos continuarão a penetrar nas mais diversas esferas da vida, passando a mediar, conforme regras criadas por empresas privadas, as relações sociais e econômicas aí existentes e as novas que surgirão. Daí a importância de se trazer para a esfera pública a discussão sobre os critérios que vão pautar essas relações, sendo esse o único caminho para que o interesse social e coletivo prevaleça sobre o interesse econômico privado.

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(3) comentários Escrever comentário

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Fabio em 12/11/2019 - 18h00 comentou:

A “uberização” está desconstruindo a figura da relação de emprego. Essa ainda existe, nos mesmos termos: o trabalho continua sendo assalariado, juridicamente subordinado, pessoal e não eventual; porém, há um discurso, muito bem elaborado, que faz com que o trabalhador se identifique como empreendedor e, consequentemente, rejeite a rede protetiva oferecida pela CLT, como um anteparo mínimo a uma exploração desmedida. Apesar de continuar sendo um empregado, ele rejeita ser classificado assim, porque hoje essa associação é apresentada como sendo algo negativo. Ser empregado, hoje, é algo que atenta contra o progresso, o que é completamente falso. Isso é muito grave e terá consequências funestas para a classe trabalhadora. Logo esse padrão vai se estender para outros campos de trabalho, e muitos trabalhadores que hoje acham isso legal logo estarão na mesma situação do Jorge; mas aí , jáserá tarde demais para reclamar.

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João Marcos Florênça em 12/11/2019 - 19h28 comentou:

Trabalhar 10 a 12 horas por dia, 6 dias na semana, sem salário fixo, sem auxilio doença, seguro saúde, Vale Refeição, Vale alimentação, correndo o risco de vida a todo o momento porque nenhum motorista tem respeito pelos ciclistas, eu só posso chegar a uma conclusão; Feliz aqueles que estão empregados e registrados no Call Center.

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Angela em 22/11/2019 - 14h03 comentou:

Quando crescer, quero ser igual à você!!!!

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