Socialista Morena
Trabalho

Reforma da Previdência de Bolsonaro é a que mais afeta vulneráveis

A reforma da previdência que queremos é aquela que amplia direitos, corta os reais privilégios e garante dignidade aos brasileiros

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
da Saúde em Debate
16 de abril de 2019, 15h21

Por Lenaura de Vasconcelos Costa Lobato
Ana Maria Costa
Maria Lucia Frizon Rizzotto
na Saúde em Debate

Em recente entrevista, Raghuram Rajan, ex-economista-chefe do insuspeito FMI (Fundo Monetário Internacional), declarou que “o capitalismo está sob séria ameaça” porque “parou de prover as massas e quando isso acontece, as massas se rebelam contra o capitalismo”; acrescentando que isso pode acontecer mais cedo do que se imagina. Para o economista, os governos não podem mais ignorar a desigualdade social em suas políticas econômicas.

Na mesma direção, o ministro das Finanças da França, Bruno Le Maire, do governo conservador de Emmanuel Macron, que enfrenta forte oposição do movimento dos Coletes Amarelos, declarou que o capitalismo pode entrar em colapso se a desigualdade global continuar aumentando, sugerindo um imposto corporativo mínimo para restringir o poder das corporações multinacionais. Para o ministro, ou o capitalismo se ‘reinventa’, ou não sobreviverá ao aumento das desigualdades em todo o mundo.

Apesar da alegação de defesa dos interesses dos trabalhadores, as centrais sindicais não foram incorporadas ao processo de elaboração da proposta, fato inédito em todos os governos desde a redemocratização

Se bem as declarações demonstrem preocupação essencialmente com os riscos ao capitalismo do que com a desigualdade, é claro o reconhecimento de que medidas globais devem ser adotadas. O avanço da financeirização sobre os recursos nacionais em nível global tem ampliado a concentração de renda, valendo-se, para isso, da asfixia da política democrática como campo legítimo de intermediação dos conflitos decorrentes das condições estruturais do capitalismo. O crescimento de governos conservadores e de extrema direita nacionalistas associado à criminalização de governos social democratas ou de centro-esquerda são consequências desse novo estágio do capitalismo.

Streeck argumenta sobre a incompatibilidade atual entre capitalismo e democracia, que teria prosperado, na verdade, por muito pouco tempo, ou seja, nos 30 anos gloriosos do período pós-Segunda Guerra Mundial. Mesmo em concordância com a tese, é preciso ressaltar que se o conjunto de elementos que sustentou os anos dourados desapareceu ou se fragilizou, a experiência democrática, no sentido da participação política e do acesso a direitos sociais, é capaz de criar raízes e valores sociais que podem ser resgatados em defesa de direitos sociais restringidos.

A maior e mais perene experiência de democratização social do capitalismo são os sistemas públicos de aposentadorias e pensões. Mesmo se criados por regimes conservadores, autoritários e com o objetivo de assegurar os preceitos básicos da acumulação capitalista, garantindo a reprodução extensiva da força de trabalho, esses sistemas cresceram e se aperfeiçoaram pela intensa participação da classe trabalhadora organizada e se transformaram no pilar dos direitos sociais. Nesse sentido, as reformas levadas a cabo nos sistemas de aposentadoria e pensões têm o sentido de concentrar os recursos dos Estados nacionais, sob o apelo dos supostamente necessários ajustes fiscais, mas têm também o objetivo de restringir e suprimir o potente vínculo de solidariedade social que os sistemas de aposentadorias geraram nas sociedades ocidentais.

No Brasil, uma inédita associação entre extrema direita e liberalismo econômico assumiu o governo em janeiro de 2019. Sob a presidência de Jair Bolsonaro, uma pauta conservadora é sustentada por propostas liberais no campo econômico, que tem na reforma da previdência social seu principal objetivo. A previdência social brasileira é a instituição mais sólida e reconhecida no vasto campo dos direitos sociais. A experiência da previdência social e de suas contradições derivou muito do aparato social que temos hoje. O Sistema Único de Saúde (SUS) e seus princípios foram, em grande parte, construídos a partir da crítica à experiência de vinculação da assistência médica à previdência social; assim como a assistência social derivou da crítica à experiência da Legião Brasileira de Assistência (LBA) e demais práticas assistencialistas.

A Constituição Federal de 1988 criou o capítulo inédito da ordem social que tem como objetivo o bem-estar e a justiça social; e nele, a seguridade social, como conceito organizador da proteção social, que compreende a saúde, a previdência social e a assistência social. Desde então, muitas alterações, já estudadas pela literatura, foram feitas nessa estrutura, infelizmente mais restritivas do que inclusivas. No caso da previdência, reformas foram empreendidas em todos os governos desde a Constituição, mas a proposta feita pelo governo Jair Bolsonaro é a mais ampla, visto que altera radical e profundamente o que foi construído desde a década de 1930. É também a mais injusta com os brasileiros e a que mais aumenta riscos aos grupos mais vulneráveis de mulheres e idosos.

Não há nenhuma garantia de que a receita obtida com a reforma seja aplicada em benefício da população, em investimentos em saúde, educação, segurança e infraestrutura, como alega a exposição de motivos da proposta

A reforma do ministro Paulo Guedes é apresentada por meio da Proposta de Emenda à Constituição 06/2019 (PEC-06/2019). Na exposição de motivos, a reforma é justificada como necessária para que a previdência tenha sustentabilidade no presente e para as futuras gerações, garantindo maior equidade. A partir desses argumentos, ela propõe uma série de mudanças para o acesso a benefícios previdenciários: ampliação do tempo de contribuição e de idade, redução do valor de pensões, restrição à aposentadoria rural e ao Benefício de Prestação Continuada (BPC). Por outro lado, propõe uma reestruturação total da previdência que acaba com o regime de repartição/solidário e cria um regime – de capitalização –, expondo, dessa forma, o interesse central do grupo que governa. Dada a extensão da proposta, salientamos, com base nas análises do grupo de estudos Futuros da proteção Social, coordenado pela professora Sonia Fleury, do Centro de Estudos Estratégicos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), alguns aspectos que precisam ser amplamente discutidos e compreendidos:

 A ausência de debate da reforma com a sociedade. Apesar da alegação de defesa dos interesses dos trabalhadores, as centrais sindicais não foram incorporadas ao processo de elaboração da proposta, fato inédito em todos os governos desde a redemocratização.

– O argumento da sustentabilidade. Questionado por especialistas que comprovam a ausência de deficit se consideradas as premissas constitucionais do orçamento da seguridade social, a retirada de recursos da previdência pela Desvinculação de Recursos da União (DRU) e a ampla sonegação e isenção de impostos e contribuições concedidas às empresas. Soluções na direção desses três aspectos poderiam melhorar o ‘caixa’ da previdência sem necessidade de alterações profundas. O governo apresentou um impacto líquido de cerca de R$ 1 trilhão em receitas com a reforma, mas não apresentou a base de cálculo que gerou esse valor, o que suscita desconfiança sobre o ganho real para as contas públicas. Da mesma forma, não há nenhuma garantia de que a receita obtida com a reforma seja aplicada em benefício da população, em investimentos em saúde, educação, segurança e infraestrutura, como alega a exposição de motivos da proposta. Com o teto de gastos aprovado no governo Temer e já em aplicação (EC-95), os limites para as despesas já estão dados, o que torna a argumentação vazia e insustentável. Nesse sentido, como afirma o economista Ricardo Moreira, a reforma seria mesmo um ajuste fiscal.

Ao contrário do que afirmam seus defensores, a reforma não acaba com os privilégios; e pouco altera o setor reconhecidamente mais privilegiado, os militares, que são objeto de proposta em separado, esta, sim, elaborada com a participação da corporação

– No tocante aos benefícios e critérios de concessão, ao contrário do que afirmam seus defensores, a reforma não acaba com os privilégios e gera equidade; de outro modo, pouco altera o setor reconhecidamente mais privilegiado, os militares, que são objeto de proposta em separado, esta, sim, elaborada com a participação da corporação, vinculada a um plano de carreira com aumentos salariais, mas que mantêm inequidades entre níveis hierárquicos e entre as forças nacionais e estaduais (polícias militares e bombeiros), em favor das primeiras. Os funcionários públicos já haviam sido incluídos no teto do regime geral desde a reforma de 2003 do governo Lula, que acabou com a paridade e a integralidade e instituiu a contribuição aos fundos de servidores públicos. Nesse setor há, de fato, problemas de inequidade e deficit, mas que poderiam ser reduzidos com o cumprimento do teto salarial nacional.

– A reforma é mais radical e perversa com os trabalhadores do setor privado, trabalhadores rurais, mulheres e pobres. Os novos critérios de tempo de contribuição e de idade mínima são extremamente duros considerando-se as desigualdades regionais de expectativa de vida. O projeto considera a expectativa de vida de 76 anos para os brasileiros, quando se sabe que ela pode ser bem menor em regiões mais pobres e na população com piores condições de vida, seja no meio rural, seja nas periferias das grandes cidades. A exigência de 20 anos de contribuição para a aposentadoria rural, além de 60 anos para homens e mulheres, impede que esses trabalhadores, em especial as mulheres, aposentem-se.

– A irregularidade e a informalidade do trabalho vão restringir a aposentadoria por contribuição dos urbanos. A reforma desconsidera os levantamentos recentes dos resultados da reforma trabalhista, que mostram que não aumentou a formalização do trabalho, como apregoado. Os impactos do trabalho inseguro, com baixos salários e irregular, vão reduzir as contribuições à previdência, aumentar o adoecimento dos trabalhadores e a demanda por auxílio doença. Essa demanda será reprimida pela Medida Provisória nº 8716, que visa combater fraudes mediante incentivos financeiros a médicos peritos e técnicos do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) para enrijecer os controles sobre benefícios.

– Chama-se atenção para as mudanças no BPC, que atende idosos com mais de 65 anos e pessoas com deficiência com renda familiar per capita de até um quarto do salário mínimo. Esse benefício não contributivo tem alto impacto nas condições de vida dos segmentos que atende e foi alvo de mudanças, já que é de um salário mínimo, considerado valor ‘alto’ para miseráveis. A reforma propõe um benefício geral aos 60 anos no valor de R$ 400,00; e o pagamento de um salário mínimo se daria apenas aos 70 anos. Como as pessoas com deficiência precisam passar por um rigoroso processo de avaliação médica e social pelo INSS, e considerando os princípios da citada Medida 871, supõe-se que o acesso será ainda mais difícil. É importante frisar que muitos são crianças e jovens com incapacidades graves que dependem integralmente de assistência, em geral dadas pelas mães, que deixam o mercado de trabalho para cuidar dos filhos. Essas não vão conseguir se aposentar, e os filhos correm o risco de ficar sem o BPC.

– A mudança para o regime de capitalização altera a estrutura do regime previdenciário atual, uma vez que ainda está muito pouco clara na reforma. A PEC indica que será um regime do tipo “contas nocionais” (virtuais) – “capitalização em regime de contribuição definida, admitido o sistema de contas nocionais” –, mas não define claramente o que é. Pelo que consta na exposição de motivos, o regime é de capitalização pura tanto para o regime geral quanto para os servidores públicos, com a criação de um piso básico universal de um salário mínimo. Regimes de capitalização têm, em geral, custos altos de transição, que a proposta não explicita como e com quais recursos seriam cobertos.

Sem o mecanismo solidário de contribuições do conjunto da sociedade, com altos custos de administração e a incerteza do valor do benefício, a experiência chilena foi negativa. Os valores das aposentadorias foram drasticamente reduzidos e a pobreza entre os idosos cresceu

O regime de capitalização foi adotado primeiramente no Chile pela ditadura de Pinochet, gerando inúmeros problemas. Isso porque as contas são individuais, mantidas apenas pelo próprio trabalhador (sem participação dos empregadores), geridas por instituições privadas. O aposentado recebe proporcionalmente ao que contribuir e pelo tempo que sua conta individual permitir. Sem o mecanismo solidário de contribuições do conjunto da sociedade, com altos custos de administração e a incerteza do valor do benefício, a experiência chilena foi negativa. Os valores das aposentadorias foram drasticamente reduzidos, por vezes, interrompido o benefício, ampliando a pobreza entre os idosos. Para o economista chileno Andras Uthoff, a “capitalização transformou adultos de classe média em idosos pobres”, e não trouxe benefícios para a sociedade, já que cerca de 40% dos recursos do fundo dos trabalhadores está aplicado fora do país. As características de renda, trabalho e emprego no Brasil, além de nossa altíssima desigualdade, não são nada promissoras para um regime como esse.

Diante de tantas incertezas, de medidas que agravam as condições de vida e sem garantias de benefícios gerais para a população, a reforma proposta pelo governo enfrenta muitas resistências na sociedade. Para a condição de saúde dos brasileiros, os malefícios são óbvios, com riscos de agravamento das condições de vida de idosos e beneficiários da previdência, de mulheres em especial.

Para concluir, retomamos os princípios da Reforma Sanitária defendida pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), em que se compreende que a saúde deve fazer parte de um amplo sistema de proteção social, integral, democrático e participativo. A reforma da previdência que queremos é aquela que amplia direitos, corta os reais privilégios e garante dignidade a todos os brasileiros. Essa, não!

 

 


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João Jr. em 26/04/2019 - 22h42 comentou:

As pessoas não distinguem arrecadação de orçamento, estão convencidas de que o governo pode pôr tudo o que arrecada no orçamento. Não pode. Como assim? As dívidas pagas pelo governo não entram no orçamento. Se o governo arrecada R$ 6 tri e deve R$ 3,4 tri, o orçamento, perceba, é de R$ 2,6 tri e toda aquela dívida é o que chama-se de dívida pública. A população está enganada quanto ao que puxa a economia para baixo. A dívida pública é o que traz a economia do Brasil para baixo, é o maior problema da governabilidade. E ninguém quer explicar o que ela é, de onde vem e porque o governo tem que economizar tudo o que não pode e pagar essa verdadeira extorsão às elites, à plutocracia! A economia proposta por Paulo Guedes equivale a quase metade do orçamento de um ano inteiro de investimentos do governo. Isso quer dizer que, em uma década, o governo vai dedicar um ano inteiro de arrecadação, não de orçamento, mas de arrecadação… só para pagar a dívida pública! É um escândalo! É tirar dinheiro de quem mais precisa e dar aos que mais têm! Como Boulos disse muito bem, isso é o “Bolsa banqueiro”…

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