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Direitos Humanos

A cara da fome

Nesses tempos sombrios, o que estamos fazendo para ajudar a acabar com a fome de quem sente o gosto do estômago vazio?

Mulher desnutrida em Mali, 1985. Foto: Sebastião Salgado
Willian Novaes
28 de março de 2021, 16h15

O dia em que vi a fome na minha frente eu tremi. Até hoje enxergo a profundidade daquele olhar. Dos lábios e das mãos finas, tremendo. Ela se sentou fraca no primeiro degrau da nossa escada. Aquela mulher, aquela pequena e magra pessoa estava esfomeada de vida, de alimentos e de esperanças.

Imagino tudo isso, porque ela foi procurar comida em nossa pequena e modesta casa, no alto daquele lugar num canto de São Paulo. Aquela moça, talvez com 20 anos, subiu as escadas ancorada por minha mãe. Lembro-me de ficar no braço do sofá ouvindo-a falar. Minha mãe esquentou um prato de comida e ofereceu um suco e me mandou pegar dois limões bem grandes no pé, lá no fundo do quintal. Relembro-me de mamãe colocar muito açúcar, quase metade do copo, fiquei com inveja, porque ela nunca fazia os nossos assim tão docinhos.

A visita comeu tudinho e deixou aquele olhar tristonho voar pra longe. Um sorriso apareceu naquele rosto duro e pesado de quem sempre sofreu muito. Depois fui entender tudinho. A minha mãe explicou o que acontecia ali.

Voltei a ver os olhares de pessoas esfomeadas, famintas, tristes e desoladas pelas ruas, calçadas e favelas de SP. A frase que mais marcou: “A fome é igual a andar de bicicleta, sentiu uma vez, você sabe bem quando ela volta”

Filho, isso é a vida de verdade, a vida de muitos brasileiros, por isso te falo tanto pra vocês estudarem, é a única saída. E ainda frisou.  Você viu aquela mocinha? A sua vó, a mãe do papai, conta que passou por isso quando eles chegaram a São Paulo. A vida é dura, filho.

O porquê dessa lembrança tão dolorida em tempos tão ou mais sofridos do que os anos 1980? Porque eu voltei a ver os olhares de pessoas esfomeadas, famintas, tristes e desoladas pelas ruas, calçadas e favelas de SP.

Meu irmão fez um novo caminho para chegar à casa do nosso pai e passou por uma favela que beira a linha de trem aqui na ZN. O carro precisava parar para passar pelos buracos e desviar das pessoas que ali pediam alimentos. Sempre as mulheres na linha de frente, muitas magras e com os rostos cavados, magros, chupados, duros e impregnados de tristeza. Os filhos sempre a tiracolo, todos pequenos sujos e chorando.

Uma negra alta nos fez parar o carro e tive que perguntar: o que estava acontecendo ali? Ela me respondeu que pararam as doações e não sabiam mais o que fazer para fugir do vírus e o mais difícil, como colocar comida para dentro de casa, afinal, não tinham dinheiro, emprego e assistência de ninguém.

A fome voltou a ser parceira e amiga de todos ali. Muitos eram crianças quando passaram fome pela primeira, segunda e centésima vez. A frase que mais marcou, foi ela dizendo: “A fome é igual a andar de bicicleta, sentiu uma vez, você sabe bem quando ela volta”.

Nesses tempos sombrios, o que estamos fazendo para ajudar a acabar com a fome de quem passa, de quem sofre, de quem sente o gosto do estômago vazio? Dos governos, infelizmente podemos pouco esperar. Será que vamos ajudar essas pessoas que dormem e acordam com a barriga vazia de rango, de proteínas, de carboidratos e principalmente de esperança?

 


(2) comentários Escrever comentário

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Pedro de Alcântara em 28/03/2021 - 17h16 comentou:

Nos países socialistas isto não acontece. Como diz o Jean Ziegler, não se morre de fome, se é assassinado de fome. Ele fala da fome com um grande conhecimento de causa. O mundo produz atualmente alimentos para 12 bilhões de pessoas. Só a Argentina, segundo o presidente Fernándes, produz alimentos para 400 milhões de pessoas e no entanto qual foi o grande feito do Macri? Reduzir à fome 30% dos argentinos. Precisamos entender por que existe fome mesmo no país mais do rico do mundo. Talvez tenhamos que entender melhor o que é o lucro capitalista.

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Bernardo Santos Melo em 02/04/2021 - 10h14 comentou:

Chegamos na encruzilhada :
NATUREZA ou MORTE !

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