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Darcy denuncia as negociatas da ditadura (e assombra a semelhança com a era Temer)

Foi na ditadura civil-militar, ao contrário do que defendem os saudosistas que vão às ruas pedir por uma nova “intervenção” (sic) das Forças Armadas, que a corrupção brasileira se profissionalizou. Imaginem: uma época em que não se podia denunciar nada só podia ser uma época de ouro para ladrões de dinheiro público. Segundo o historiador […]

Cynara Menezes
17 de fevereiro de 2017, 18h54
darcymae

(Darcy se despede da mãe antes de partir para o exílio, em 1968. Foto: Fundação Darcy Ribeiro)

Foi na ditadura civil-militar, ao contrário do que defendem os saudosistas que vão às ruas pedir por uma nova “intervenção” (sic) das Forças Armadas, que a corrupção brasileira se profissionalizou. Imaginem: uma época em que não se podia denunciar nada só podia ser uma época de ouro para ladrões de dinheiro público. Segundo o historiador Pedro Henrique Campos, autor do livro Estranhas Catedrais, o pagamento de propinas a empreiteiras, por exemplo, se consolidou durante o governo militar (leia mais nesta reportagem da BBC).

Um dos últimos membros do governo Jango a deixar o Palácio do Planalto em 1964, o antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997) denunciou, após a volta da democracia, as negociatas que se seguiram ao golpe. O Brasil perdeu terras e empresas públicas, entregues a preço de banana para os gringos, quando não de mão beijada, como parte do acordo para derrubar Jango. Assombram a atualidade e a semelhança com o que está acontecendo agora, com o novo golpe que arrancou Dilma Rousseff do cargo, inclusive nas ameaças aos direitos dos trabalhadores. (Eu marquei as semelhanças mais evidentes em negrito).

Leiam algumas das falcatruas denunciadas por Darcy, em ordem cronológica, no dia em que se completam 20 anos de sua morte. Que falta ele faz ao país…

***

As negociatas da ditadura*

Por Darcy Ribeiro

1964

A empresa CONSULTEC, organizada por Roberto Campos, Mauro Thibau e Garrido Torres Lucas Lopes como um grupo de assessoria e de pressão da Hanna Corporation, que funcionou como principal agência de coordenação e financiamento das atividades das multinacionais de apoio ao golpe de 1964, se converte num bloco de poder depois do golpe. Assume, a seguir, o comando da política econômica do governo militar juntamente com os velhos testas-de-ferro das empresas estrangeiras. Em consequência, 15 dias depois do golpe, o Congresso revoga a Lei de Remessa de Lucros. Revoga, a seguir, a Lei de Estabilidade no Emprego, principal conquista dos trabalhadores no período getulista.

Roberto Campos, ministro do Planejamento, e Otávio Gouveia de Bulhões, ministro da Fazenda, negociam a dívida externa brasileira com o FMI nos termos que os banqueiros ditam. O preço real foi a abertura de toda a economia brasileira e de todos nossos recursos naturais às empresas multinacionais e a aceitação das condições ditadas pela Hanna e pela Amforp para a solução de seus litígios com o governo.

Os norte-americanos socorrem com urgência o governo que implantaram, mandando entregar imediatamente a Castelo Branco, por conta da Aliança para o Progresso, 4 milhões de dólares para despesas de algibeira e, logo depois, mais 883 milhões como empréstimo. Mas começam também a cobrar, fazendo o governo comprar por 105 milhões de dólares as empresas que Brizola havia desapropriado por um dólar e que de Jango só reclamavam 30 milhões.

Roberto Campos, Eugênio Gudin e Otávio Gouveia de Bulhões, montados no poderio da ditadura, dão um aumento de 100% aos militares e, assim respaldados, ditam a política econômica antinacional e socialmente irresponsável que jamais haviam podido executar. (…) Roberto Campos entrega o BNDE a Garrido Torres, com o encargo de matá-lo; para isto, tenta extinguir os fundos públicos com que operava. Queria vingar-se dos técnicos que o haviam expulsado do banco como entreguista e corrupto.

Três decretos marotos conseguem à Light tudo que ela pedia: elevação de tarifas e sua correção automática, bem como a reavaliação dos seus ativos convertidos, para nós, em astronômicos passivos.

O governo devolve as refinarias particulares encampadas por Jango. Sabendo quanto elas pagariam de suborno para não serem encampadas, posso avaliar o que terão pago para serem desencampadas.

A ditadura regulamenta o artigo da Constituição que garante direitos de greve, para torná-la totalmente ilegal e punível. (…) O novo ministro do Trabalho, Arnaldo Sussekind, intervém em cerca de mil sindicatos, destitui as antigas diretorias legalmente empossadas e dissolve entidades sindicais de grau superior.

Roberto Campos faz Castelo Branco decretar a anistia fiscal para os brasileiros que repatriassem depósitos clandestinos de dólares no exterior.

A Handson’s Letter de Wall Street chama os brasileiros de “palhaços do mundo” pela compra da Amforp por 135 milhões de dólares. A compra negociada por Roberto Campos previu o pagamento de 10 milhões de dólares à vista, provavelmente o suborno; 24, 7 milhões em vinte anos, a juros de 6%; e 100 milhões, no mesmo prazo, a juros de 6,5%. Dos 100% de ações compradas, o Brasil só recebeu 75%; os outros 25% seriam as tais “ações sem valor ao par”, dadas aqui aos figurões que a Amforp subornou ou aos diretores cuja dedicação premiou. Assim terminaram as expropriações de Brizola, as empresas gaúchas da ITT e da BBS.

1965

O Serviço Geológico dos Estados Unidos rouba e entrega à U.S.Steel os levantamentos realizados por uma empresa brasileira para o governo, graças aos quais se localizou na Serra dos Carajás uma grande jazida de calcário e minério de ferro (18 bilhões de toneladas). A empresa americana, para se apropriar das jazidas, arma uma falcatrua, apresentando requerimentos de 167 funcionários no seu escritório de Belém, que incluíam desde porteiro e secretária até o diretor, requerendo alvarás de exploração de Carajás como uma montanha de calcário. A maroteira era tão escandalosa que nem o governo ditatorial pôde aprovar. Mas, ainda assim, concede à mesma United States Steel um alvará de exploração do minério de ferro de Carajás para exportação, que eles prometem iniciar imediatamente. Nunca iniciaram, porque o objetivo era, como sempre, ficar sentada em cima das concessões de mineração que obtinham. Mas venderam depois, ao próprio governo, esta licença incumprida, por bom dinheiro.

Dado o desinteresse da Light em expandir e melhorar os seus serviços de telefone, o governo decide nacionalizá-los. A empresa cede gostosamente. Pagaram o dobro do que ela pediu originalmente, uma bolada a pagar em 80 prestações trimestrais a juros de 6% –em dólares.

É promulgada e posta em execução a Lei 4.725, destinada a reduzir os salários reais através dos critérios de fixação do salário mínimo e de controle dos aumentos salariais. A nova lei, somada à repressão policial e à intervenção nos sindicatos, submete o trabalho à servidão frente ao capital.

A USP e a UFRJ, bem como dezenas de vetustas instituições culturais, veem surgir de dentro delas, espumantes de ódio, intelectuais repressores que aderem à ditadura e passam a apontar, de dedo duro, a seus colegas mais competentes como subversivos. O reitor da USP, Gama e Silva, se credencia para ministro da Justiça nomeando uma Comissão Dedo-Duro, que compões laboriosamente uma lista de 50 professores e estudantes dos mais brilhantes e remete aos órgãos de segurança para serem punidos e demitidos.

Entra em ação o acordo MEC-USAID, ratificado secretamente em 1967 para implantar a reforma universitária, que corresponde ao espírito da ditadura, privatizando as universidades públicas e dissolvendo as organizações estudantis. Para isto, o general Meira Matos junta milicos e deseducadores brasileiros com subintelectuais norte-americanos contratados pelo mesmo órgão de Washington que patrocinou o treinamento dos torturadores.

1966

Juracy Magalhães, embaixador do Brasil em Washington, convencido de que é bom para o Brasil tudo que for lucrativo para os Estados Unidos, assina um Pacto de Submissão Colonial. Por ele, se dá garantias formais de que respeitaremos as leis norte-americanas que garantem os investimentos de suas empresas no Brasil até 20 anos depois de qualquer futura lei brasileira que venha a afetá-los.

A reforma tributária é posta em execução, impondo o predomínio da União e reduzindo drasticamente as fontes de recurso dos estados e dos municípios, que passam, assim, a depender inteiramente das autoridades federais.

O bando entreguista instalado no poder entrega à Hanna Corporation –empresa reconhecidamente não-idônea nos Estados Unidos – a Companhia Vale do Paraopeba, detentora de imensas jazidas minerais– com a qual João Goulart pensava fazer a independência do Brasil, vendendo minério exclusivamente para construir siderúrgicas. A Hanna recebe, ainda, a estrada de ferro que liga Minas ao Rio para exportação de ferro e manganês, em competição com a Cia. Vale do Rio Doce. Desgastada no uso mais intensivo para transferir as montanhas de Minas para os Estados Unidos, a Rede Ferroviária custa ao governo brasileiro, em subsídios anuais, muito mais do que tudo que a Hanna paga pelo minério. Pelo uso daquela rede ferroviária de 633km de Belo Horizonte ao porto privado de Sepetiba, a Hanna pagava uma tarifa de 125 cruzeiros por tonelada, quando o preço de custo para o governo era de 160 mil cruzeiros. Em consequência desta outorga, o governo inicia a construção de uma outra estrada, por nossa conta, a Ferrovia do Aço, para levar o minério de Minas a Volta Redonda. Nela, já se gastaram mais de 2 bilhões de dólares, e falta outro tanto. Tamanha dação só se explica porque a Hanna foi a principal financiadora do golpe de 1964.

1967

Castelo Branco paga a última prestação do preço do golpe de 1964: um avião militar norte-americano desembarca em Brasília os diretores da Hanna Corporation que vêm firmar com Azevedo Antunes a ata de fundação da empresa nominalmente nacional, Minerações Brasileiras Reunidas, a fim de legalizar a apropriação estrangeira de 720km² das terras de Minas Gerais, onde se encontra uma das maiores reservas de minérios deste mundo, que Jango havia recuperado para o Brasil e eles ganharam.

Escândalo nacional com as acusações a Roberto Campos de ter participado da “vaquinha” que enriqueceu vários membros do governo com a nova alta do dólar por ele decretada.

O milionário Daniel K. Ludwig –secretariado por Heitor Ferreira de Aquino, que também foi secretário de Geisel e Figueiredo– compra, com a ajuda zelosa do general Golbery, um país de 60 milkm², no Amapá e no Pará, para montar ali um ambicioso projeto madeireiro, minerador e agroindustrial. Acaba dando imenso prejuízo que, como sempre, o Banco do Brasil assume e converte em mais uma negociata na forma de empréstimos subsidiados a milionários nativos.

Eminentes educadoras paulistas como Maria José Werebe, Maria Nilde Mascelani e Teresinha Framme, em São Paulo, Henriette Amado e diversas outras no Rio são perseguidas e denunciadas escandalosamente por darem uma orientação esclarecida a seus alunos sobre a matéria sexual.

Um incêndio suspeito destrói os artigos com a documentação e os registros de terras de índios e a filmoteca do velho SPI, então sob a guarda da Funai em Brasília.

1969

A Phillips Petroleum consegue de Costa e Silva a construção de um grande conjunto habitacional , bem em cima de uma jazida de fosforita, em Olinda, para inviabilizar sua exploração, que era competitiva com a deles.

1970

Avança o loteamento da Amazônia. Além dos 6 milhões de hectares de Ludwig, são doados 668 mil à Suyá-Missu, 600 mil à Codeara, 500 mil à Paragominas e outros tantos à Georgia Pacific, à Bruynzeel, à Volkswagen e à Robin Mac. Também entram na negociata a Anderson Clayton, a Swift-Armour, a Goodyear, a Nestlé, a Mitsubishi, a Bordon, a Mappin, além dos nativos Camargo Corrêa, Bradesco et caterva.

Acelera-se, em consequência, a destruição da floresta amazônica com drogas desfolhantes, napalm e correntes arrastadas por enormes tratores de esteira. O programa é esteira. O programa é transformar a selva em pastagens.

É criado o INCRA –Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária–, mas o que se implanta é a anti-reforma pela entrega de glebas quilométricas a grandes empresas para serem afazendadas à custa do povo. Isto porque as beneficiárias podem deduzir todos os seus gastos até a metade do imposto de renda que deveriam pagar, mas embolsam. Incrível, só neste Brasil da ladroagem.

Paulo Freire, exilado, publica nos Estados Unidos sua obra maior: Pedagogia do Oprimido, uma apreciação crítica de suas práticas de pioneiro da educação de adultos. Este livro é o texto educacional brasileiros mais traduzido e que exerce maior influência no mundo. Curioso é que, tal como ocorreu com Josué de Castro –outro intelectual nosso com grande êxito internacional, detestado pela mediocridade nativa–, Paulo Freire provoca a inveja mais odienta de toda a pedagogia fútil e vadia, que nada faz, mas se engalana com plumas tiradas do nosso grande educador.

É criado o Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral), destinado a pôr em prática um imenso programa de alfabetização imbecilizadora, aplicando ao contrário os métodos de Paulo Freire. Somado à repressão nas universidades, e mantido o ensino fundamental nesta campanha de alfabetização despolitizadora, a ditadura reduz drasticamente os gastos com a educação, que de 11,2% di irçamento da União, em 1962, caem para 5,4%.

1971

A ditadura, simultaneamente à liquidação política do Congresso nacional, o degrada com vergonhosas mordomias para legisladores que não legislam; o clientelismo de legiões de assessores e serviçais bem pagos e o faraonismo que converte a Câmara e o Senado –inúteis– nos maiores edifícios públicos do mundo.

São Paulo, na primeira fase da industrialização pioneira, realizada pelos Mattarazzo, gostava de se ver como a locomotiva que arrastava o Brasil, como um comboio de vagões vazios. Com a industrialização substitutiva, através da implantação de grandes fábricas das multinacionais, muda de imagem. Começa a ser vista pelo país como a grande bomba de sucção que nos sangra, para carrear lucros para o estrangeiro. Com efeito, o intercâmbio entre São Paulo e o resto do Brasil passa a ser tão desigual que alguns estados planejam criar reservas de mercado para suas próprias indústrias,  fim de enfrentar o colonialismo interno, praticado ferozmente pelos gerentes paulistas das multinacionais.

A exploração dos doentes brasileiros pelas multinacionais, produtoras de remédios, que controlam a produção e o mercado, chega a níveis tão altos que provoca, mesmo na ditadura, a provação de um Plano Diretor de Medicamentos destinado a pôr cobro no escândalo. Mas Wall Street protesta e o Plano é anulado.

Graças ao cientista Albert Sabin, se verifica que o governo Médici, além de falsificar os índices do custo de vida para comprimir salários e de exagerar os progressos da alfabetização, mente também nas informações relativas ás condições sanitárias da população, declarando vacinações antipólio que não realizou, o que põe em risco a população infantil.

1972

A Hanna e Antunes inauguram, na baía de Sepetiba, no Rio de Janeiro, um porto próprio, destinado a transportar para os Estados unidos as montanhas de ferro de Minas Gerais, a fim de constituir, ali, uma gigantesca reserva que garantirá tanto a prosperidade futura deles como a nossa pobreza.

*Trechos do livro Aos Trancos e Barrancos – Como o Brasil Deu No Que Deu, de Darcy Ribeiro, publicado em 1985 pela editora Guanabara.

 

 


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