E agora, Catalunha? Alegria e incerteza após 89% dizerem “sim” à independência
Há expectativa de que em 72 horas o presidente da Generalitat declare a independência da comunidade autônoma, mas o governo central está sendo instado a intervir
O governo catalão anunciou na madrugada do dia 2 de outubro que o “sim” havia ganhado o referendo com quase 90% dos votos referentes aos 2.262.424 catalães que puderam votar no último domingo, 1º de outubro. O governo também informou que 770 mil cidadãos não puderam exercer seu direito ao voto porque 400 colégios eleitorais foram fechados e as urnas apreendidas pela polícia espanhola.
Apesar de a participação ter sido de menos da metade do censo apto a votar (42% dos 5.313.000 cadastrados), o governo qualifica os números do resultado final como “incríveis”, tendo em conta a “atuação selvagem da polícia” que ocasionou em 893 pessoas feridas, das quais 73 prestaram denúncia. Até as 10 horas desta segunda-feira, quatro pessoas ainda estavam internadas sendo duas em estado grave, porém estáveis, segundo o Departamento de Saúde.
Uma greve geral foi convocada pelos sindicatos para esta terça-feira, 3 de outubro
Há expectativa de que em 72 horas o presidente da Generalitat, Carles Puigdemont, declare a independência da Catalunha. Enquanto isso, o presidente de governo espanhol, Mariano Rajoy, está sendo cobrado para que aplique o artigo 155 da Constituição, que suspende a autonomia e autoriza a intervenção na comunidade, com a convocação de eleições. Analistas dizem que, se agir assim, Rajoy poderá acirrar ainda mais os ânimos. Em direção oposta, o líder do PSOE, Pedro Sánchez, aconselhou o presidente a abrir o quanto antes o diálogo com Puigdemont.
Uma greve geral foi convocada pelos sindicatos para esta terça-feira, 3 de outubro, em protesto contra a violência da Guarda Civil espanhola nas votações do referendo pela independência. O jornal satírico El Jueves antecipou sua capa para apoiar a paralisação e criticar Rajoy pela truculência promovida contra os independentistas.
O governo catalão solicitou uma postura da União Europeia em relação aos fatos ocorridos durante o referendo: se ela fica do lado da “vergonha e da violência” ou da “dignidade e da democracia”. Em comunicado, o governo afirmou que “a ausência de uma resposta não indica apenas um aval aos fatos ocorridos, e portanto um aval às políticas repressivas do Estado, como também indica uma falta e uma perda de credibilidade da União Europeia e das suas instituições”.
Mas a única frase que os jornalistas conseguiram arrancar do porta-voz Margaritis Schinas foi um genérico “a violência nunca pode ser instrumento da política”.
No domingo, o dia começou muito cedo para a maioria dos catalães. Às 5 horas da manhã, muitas pessoas já estavam na frente de seus lugares de votação. Mas, para outros, a jornada começara no dia anterior.
Sob a ameaça de que a Guarda Civil não deixaria que as urnas entrassem nos colégios eleitorais, muitos catalães dormiram nas escolas que sediariam as votações. A noite seria longa, mas nem por isso tediosa. A programação era variada: recitais de poesias e contos, festa de pijamas, maratona de leituras e jantares para toda a família sem limite de idade. A iniciativa de ocupar pacificamente as escolas foi impulsionada pela plataforma Escoles Obertes (Escolas Abertas). A movimentação era em grande parte articulada pelo whatsapp e redes sociais e as primeiras escolas começaram a ser ocupadas às 5 horas da tarde do sábado, dia 30 de setembro.
As primeiras horas vieram carregadas de ansiedade e chuva. Tratores e até carros alegóricos protegiam os colégios de uma possível invasão da Guarda Civil.
Catalães usam um carro alegórico para impedir a desocupação de um colégio eleitoral #CatalanReferendum (video @naciodigital) pic.twitter.com/WkEUXJjMe2
— Gi Lanzetta (@gilanzetta) October 1, 2017
Em muitos locais de votação, as urnas demoraram a chegar, o que aumentava o estado de preocupação. O alívio, ainda que passageiro, só vinha quando elas já estavam dentro da seção eleitoral.
Entretanto, com a chegada das urnas vieram também os primeiros ataques da Guarda Civil, que tinha como objetivo confiscar as urnas e impedir a votação do referendo, considerado ilegal pelo governo e pela justiça espanhóis. O uso desmesurado da força policial causou, até o fim do dia, 893 pessoas feridas entre elas nove agentes policiais, segundo o Departamento de Saúde. Com o fechamento de algumas escolas pela força policial, o Governo catalão anunciou o Censo Universal, com o qual os catalães poderiam votar em qualquer colégio eleitoral da Catalunha. A maioria dos casos de desocupação e violência por parte da Guarda Civil foram registrados em Barcelona e arredores, como mostra o mapa interativo dos colégios eleitorais. Nem mesmo o presidente do governo catalão, Carles Puigdemont, pôde votar no local previsto.
¿Alguien puede defender esto? pic.twitter.com/WOVIYCnmAS
— Julia Otero (@julia_otero) October 1, 2017
Embora a votação tivesse sido facilitada por essa mudança do governo, em alguns dos locais de votação houve informação de que o sistema falhava e que a votação demoraria um pouco antes de ser iniciada.
“Continuamos na rua e depois de algum tempo a escola abriu e pudemos votar. O Governo espanhol insiste que o referendo não existe, mas nós catalães estamos votando”, afirmou o escritor David Vila i Ros, que operou recentemente a coluna e mesmo assim foi votar. A jornada, em muitos lugares onde a polícia espanhola não estava, foi pacífica por parte dos votantes, como afirma o administrador Marc Pané, que compareceu cedo às urnas. “As pessoas passaram o dia inteiro nos lugares de votação: de jovens até idosos. Mais de 14 horas, inclusive fazendo guarda na noite anterior para evitar a entrada da Guarda Civil, sem nenhum episódio de violência por parte dos que foram votar. Hoje foi um dia único”, disse Pané.
Momentos de solidariedade também foram constantes em todo o dia. Em muitos colégios a polícia catalã formou uma linha de frente que protegia as pessoas que custodiavam os lugares de votação.
Mossos lloran emocionados y se colocan en primera línea de manifestantes que protegen un Colegio Electoral #CatalanReferendum pic.twitter.com/S0jl78yqvm
— Undebateenmicabeza (@AltoyClaro1) October 1, 2017
Em outros, bombeiros de várias localidades da Catalunha se juntaram às correntes humanas impedindo que a Guarda Civil avançasse em direção ao interior dos colégios eleitorais. Muitas pessoas traziam consigo flores de cravo que já se converteram em um símbolo de alegria e confiança diante da barbárie.
Héroes: pic.twitter.com/ZpxGDhfAjr
— Bernat Castro (@Berlustinho) October 1, 2017
Várias personalidades catalãs se expressaram nas redes sociais a favor do referendo. O ator da série catalã Merlí, Carlos Cuevas, foi uma das pessoas que se manifestaram publicamente: “Voto orgulhoso na escola onde aprendi a ler e a escrever. Hoje falamos de paz, de liberdade de expressão, da condenação à violência feroz e do abuso policial injustificável. Falamos mais além das bandeiras: falamos de democracia com letras maiúsculas. A voz será sempre do povo; e a violência, a única arma do fascismo. Nem súditos, nem vencidos: valentes”.
À noite, o presidente do governo Carles Puigdemont agradeceu aos catalães e a todos que deram apoio neste momento de grande precedência para a Catalunha. Segundo o presidente, durante todo o dia, exemplos de compromisso, coragem e valentia ressoavam apesar da “injustificável, abusiva e grave” violência policial da Guarda Civil espanhola e suas claras violações aos direitos humanos que não podem ficar impunes.
O destino da região após o referendo é incerto, mas os catalães estão esperançosos: “Somos conscientes de que, aconteça o que acontecer, esta jornada está sendo chave. Misturam-me lágrimas de emoção com lágrimas de raiva, mas estamos orgulhos do nosso povo. Eles — os espanhóis — são herdeiros do fascismo; nós só queremos ser livres”, concluiu emocionado o escritor David Vila i Ros.
Resultado final:
Sim: 2.020.144 (89,29%)
Não: 176.566 (7,80%)
Brancos: 45.586 (2,01%)
Nulos: 20.129 (0.89%)
Adaptação de texto publicado originalmente na página da autora no Medium
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