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Morte de Otavio Frias Filho representa o fim de uma era no jornalismo brasileiro

Divergências ideológicas à parte, "OFF" fará falta ao jornalismo. Era a alma da Folha. O jornal não será o mesmo sem ele

Octavio Frias de Oliveira e seu filho Otavio em 2006. Foto: João Wainer/Folhapress
Cynara Menezes
21 de agosto de 2018, 14h38

Nos anos 1980, trabalhar na Folha de S.Paulo era o grande sonho de quase todo mundo que cursava a faculdade de Jornalismo, em qualquer canto do país. A coisa era tão disseminada que, no começo da década de 1990, quando a Folha estava no auge, um repórter de Brasília ganhou o apelido de “sonho meu” porque, rezava a lenda, teria entrado para o “maior jornal do país” depois de escrever uma carta para o diretor de redação da sucursal de Brasília, Gilberto Dimenstein, dizendo: “O maior sonho meu é trabalhar na Folha“.

Eu era uma dessas focas que sonhava trabalhar no jornal que liderou a campanha das Diretas Já, em 1983, redimindo-se do passado obscuro de apoio à ditadura. A Folha praticava um matutino jovem, vibrante, objetivo, muito lido nas bancas, que de certa forma resgatava a inovação jornalística que o Diário Carioca, pioneiro em editar um manual de redaçãoiniciara ao importar o conceito de “lead” para o Brasil, a partir de 1945, e até ser levado à ruína pelos militares. Esta nova revolução tinha nome e sobrenome: Otavio Frias Filho, que morreu hoje, aos 61 anos, vítima de câncer no pâncreas. Otavio e seus “garotos” fizeram a Folha conquistar o prestígio, a projeção e a influência que o jornal desfruta até hoje.

Lá de Salvador, onde me formei na UFBA, nós acompanhávamos (e imitávamos) os feitos da Folha. Eu adorava sobretudo as reportagens com parágrafos curtos, telegráficos, sem rebuscamentos, à la Hemingway. Nas fotos que ilustravam as notícias sobre aquela geração que reinventou a Folha nos 1980, apareciam jovens moderninhos de terno e óculos de armação colorida, com visual entre o intelectual e o yuppie, cujo símbolo mais vistoso era Matinas Suzuki, que logo seria alçado ao cargo de secretário de redação.

Com todos os defeitos que a Folha teve e tem, foi uma escola para mim e para muitos, o veículo onde mais tive liberdade para publicar e onde fiz algumas das reportagens mais importantes de minha carreira

Um destes jovens era o próprio Otávio, que se firmaria ao longo dos anos como o mais jornalista entre os donos de meios de comunicação, participando dos fechamentos e influindo nas decisões editoriais. Soube depois que, ao chegar ao comando, ele havia demitido todos os jornalistas antigos da casa e substituído por recém-saídos da faculdade, para queixa de alguns e alegria de outros. Esta redação com síndrome de Peter Pan se tornaria mais tarde uma idiossincrasia do jornal, incapaz de valorizar os talentos que formou à medida que eles amadureciam –e passavam a ter salários maiores.

Quando finalmente fui trabalhar na Folha pela primeira vez, em 1989, aos 22 anos (também após pedir emprego ao Dimenstein, da mesma forma que meu amigo “sonho meu”), cheguei nos primórdios da tal “polarização” política da sociedade brasileira –naquele ano, um embate sangrento entre Fernando Collor e Lula– e a experiência, embora marcante, não durou muito. Em 1993, voltei ao jornal e até 2004 estive ligada a ele, como repórter ou colaboradora fixa. Com todos os defeitos que a Folha teve e tem, foi uma escola para mim e para muitos, foi o veículo onde mais tive liberdade para publicar e onde fiz algumas das reportagens mais importantes de minha carreira.

Aprendi na Folha a ter uma postura crítica e logo me tornei crítica inclusive dele: sempre enxerguei o Manual de Redação como um mal necessário, ao impor a todos os jornalistas, e não só aos da Folha, um jeito de escrever típico do veículo onde se trabalha, alijando as reportagens de personalidade e seus autores, de um estilo. Se por um lado o manual livrou os jornais dos clichês (imaginem que houve um tempo em que se podia substituir “bombeiros” por “valentes soldados do fogo”), a tal “objetividade” era um limitador, e empobrecia os textos. A obsessão por clareza facilita a leitura, mas facilitar a leitura forma leitores? Acho que não.

O legado de Otavio é a ideia de que o jornalismo, ainda que não consiga alcançar a inatingível, utópica imparcialidade, precisa ser exercido da forma mais honesta e verdadeira possível

No final dos 1990, surgiu uma abominável “campanha de didatismo” que deixaria as reportagens cada vez menores e ainda mais mastigadas para um leitor que, diziam as pesquisas da casa, supostamente se tornara menos letrado. Como repórter, me insurgi contra colocar parênteses em cada palavra considerada “difícil” para poder explicá-las, porque nunca acreditei na concepção de jornal como algo estanque, um fim em si mesmo, e sim como ponto de partida. A partir dele, as pessoas iriam procurar outras fontes para se aprofundar, um livro, um dicionário que fosse, caramba. Algo que é bem mais prático hoje, no digital, com o uso dos hiperlinks.

Olhando em retrospectiva, não deixa de ser um paradoxo que a Folha, que cresceu pregando a imparcialidade jornalística, tenha alcançado seu ápice nas Diretas-Já, ou seja, quando tomou partido abertamente por um dos lados da disputa. Nos últimos anos, embora de forma não assumida, o jornal veio guinando para a direita, perdendo leitores ao trazer para suas folhas o pensamento reacionário raso que abriria as portas para o golpe e o fascismo. Alguém poderia imaginar que o mesmo jornal que um dia teve Paulo Francis como colunista abrigaria Kim Kataguiri, líder do MBL? O ódio e o preconceito de classe contra Lula turvaram a visão dos proprietários dos grandes veículos de comunicação, prejudicando seu jornalismo.

A morte de Otavio sem dúvida representa o fim de uma era. E talvez seja um marco simbólico das mudanças pelas quais passa a nossa profissão desde o advento do digital. Hoje, não temos mais a dependência do papel que norteou tantas decisões editoriais dentro da Folha, afetando o formato e a extensão das reportagens e estrangulando o fechamento; com as possibilidades da internet, a própria objetividade está sendo colocada em xeque. Os textos hemingwayanos não possuem o mesmo charme de antes. Não existem mais fórmulas, os manuais envelheceram e acho até que o lead datou.

O que mais faz falta na imprensa hoje é transpor para um veículo digital a mesma vibração que Otavio trouxe à Folha e ao jornalismo, junto com os ventos da redemocratização. Um jornal inspirado e inspirador para uma época idem. Os tempos pioraram e o jornalismo também

Em minha opinião, o legado de Otavio Frias Filho à frente da Folha é a ideia de que o jornalismo, ainda que não consiga alcançar a inatingível, utópica imparcialidade, precisa ser exercido da forma mais honesta e verdadeira possível. E precisa dar furos. E nunca perder o tesão pelo que se faz, coisa que a geração dele inegavelmente conseguiu e isso se refletia nas páginas do jornal. O que mais faz falta na imprensa brasileira atualmente é transpor para um veículo digital a mesma vibração que Otavio trouxe à Folha e ao jornalismo, junto com os ventos da redemocratização do país. Um jornal inspirado e inspirador para uma época idem. Os tempos pioraram e o jornalismo também.

No trato pessoal, era uma pessoa extremamente agradável, inteligente e bem humorada. Deixará muitas saudades em sua companheira, a editora Fernanda Diamant, e será lembrado como um pai amoroso por suas filhinhas Miranda e Emília.

Divergências ideológicas à parte, “OFF”, como assinava suas mensagens internas à redação, fará falta ao jornalismo. Era a alma da Folha. O jornal não será o mesmo sem ele.

 

 


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Marcos Vinicius em 21/08/2018 - 15h10 comentou:

Eu como jornalista tento ainda entender que contribuição Otávio Frias Filho deu para o jornalismo. Me desculpe. Mas não consigo ver nada de formidável nele. Talvez seja pelo fato de não ter lido o que foi a Folha antigamente. Pode ser! Mas a grande maioria dos artigos e expressões de pêsames ao chefe da Folha partiram de pessoas que viam nele uma pessoa com senso de equilíbrio, um patrão e nada mais. E no fundo isso não quer dizer nada. A única coisa perceptível para um leitor como eu foi observar como o jornal Folha de S. Paulo queria desconstruir o Brasil. Teimava em não defender os interesses do país, sua democracia e instituições. Por mais que ela fosse contra o que estivesse lá. Um jornal, que teve o poder de reafirmar valores inquestionáveis, fez o inverso. Reafirmou valores de interesses dispersos. Acho que faltou jornalismo para o Otávio Frias e não ao contrário. Saber posicionar um jornal nos momentos históricos controversos não é excepcional se dela não derivar uma visão de reafirmação de valores. Se o jornal fosse usado para construir uma massa crítica ninguém publicaria um artigo como aquele da ditabranda ou a ficha falsa da Dilma. Fim de uma era é pouco, é o fim do pesadelo.

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Carlos em 21/08/2018 - 18h22 comentou:

RIP esquerda que está tecendo loas! Pelos textões parece ser uma outra pessoa, completamente diferente. Quem, por acaso, não conhecer a história, e pegar esses textões, vai imaginar uma coisa complementante diferente da realidade. Se ele tivesse feito tudo isso que se dizem, teria siou outro jornal. Não bate com a realidade. Só porque a pessoa morreu, não vira santo automaticamente. Fica em silencio ou declara pêsames discretamente. Agora fazer textão parecendo uma pessoa desesperada que falta se jogar no caixão, como muitos textos de jornalistas de esquerda estão parecendo, é osso.

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ari em 21/08/2018 - 18h53 comentou:

Esse cidadão foi fundamental para lançar o país no pesadelo em que vivemos hoje. Deve ter tido suas virtudes – afinal, até Lampião teve – mas, pelo amor de Deus, a tragédia que ele ajudou a lançar sobre nosso povo não tem nome. Profissional por profissional. até onde eu saiba, o Roger Abdelmassih foi um grande médico.

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Laerthe Jr. em 22/08/2018 - 13h49 comentou:

É impressionante como no Brasil, qualquer personalidade ao morrer, passa por um processo de canonização. Soam ridículas as hagiografias publicadas. Assim do nada, um dono de jornal de mentalidade retrógrada e golpista sem escrúpulos, como esse Otávio aí, vira um grande contribuidor… de quê? Da democracia? Do respeito à diversidade do pensamento político e social? Da luta pelas conquistas do povo? Que nada! Ele foi apenas mais um medíocre escritor frustrado que destilou ódio pela figura mais importante de nossa história política. É pena que não viveu para ver a nova posse do Lula. Aí é que iria morrer de novo

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Silvio D. P. em 22/08/2018 - 15h28 comentou:

O Machado já disse: “Está morto, podemos elogiá-lo à vontade”. Só que não. Estive uma única ocasião na vida alguns momentos com Claudio Abramo. Eu estava chegando e ele saindo da casa de um amigo comum. Na rodinha formada na sua despedida ele contava da profunda mágoa que teve ao ser afastado da redação da FSP pelos meninos imberbes e pretenciosos que estavam tentando fazer a tal revolução do jornalismo brasileiro. Entre eles o Otávio Filho e Matinas Susuki. Um jornal que abre mão de um Claudio Abramo e demite Carlos Drumond de Andrade não é grande nem revolucionário mas está na linha do general espanhol, aquele do “abaixo a inteligência, viva a morte”.

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Claudia em 27/08/2018 - 07h19 comentou:

Praticamente um santo…

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