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Feminismo

“O Golpista do Tinder” e o Complexo de Cinderela

Como os aparentemente inofensivos desenhos de princesas da Disney tornam as mulheres vulneráveis a pilantras como Simon Leviev

O golpista Simon Leviev. Foto: reprodução instagram
Cynara Menezes
16 de fevereiro de 2022, 20h23

Em maio de 1981, a psicoterapeuta Colette Dowling lançaria nos EUA o livro que a tornou famosa: O Complexo de Cinderela, best-seller absoluto daquele começo de década, traduzido em mais de 20 países, inclusive no Brasil, onde figurou no topo de todas as listas de mais vendidos a partir de 1984, quando saiu por aqui. A tese central de Dowling é que, desde a infância, o imaginário da mulher é corrompido pela figura do homem como o “príncipe” que a protegerá dos perigos da vida real e cuidará dela para sempre. Este complexo provocaria uma castradora dependência da presença masculina, como se a felicidade da mulher estivesse condicionada a ter um homem ao lado.

“Cavalheiro”, cheio de atenções para com as escolhidas, a quem envolvia com viagens e jantares, Simon era a personificação do “príncipe”, a não ser pela cafonice das roupas de marca, dos mocassins e da cara de coxinha. Jesus, como elas não desconfiaram?

“As mulheres são criadas para dependerem de um homem e para se sentirem nuas e amedrontadas sem ele. Somos ensinadas a acreditar que nós mulheres não podemos estar sozinhas, que somos demasiado frágeis, demasiado delicadas, demasiado necessitadas de proteção”, escreveu ela em um artigo no jornal New York Times prévio ao lançamento do livro. O fato de essa dependência ser, na maioria das vezes, negada por nós mesmas torna tudo mais perigoso, porque afeta a forma como pensamos, falamos e agimos –e isso não atingiria algumas, mas todas as mulheres.

“A dependência oculta causa problemas tanto para a dona-de-casa que pede permissão para o marido na hora de comprar um vestido quanto para a executiva bem-sucedida que não consegue dormir à noite quando o companheiro está viajando”, afirmava Dowling. “O Complexo de Cinderela leva a um comportamento inapropriado ou ineficiente no trabalho, à ansiedade em relação ao sucesso, ao medo de que a independência possa levar à perda de feminilidade.”

Confesso que não dei a mínima na época. Eu tinha 14 anos e nada parecia mais distante para mim, assim como para muitas mulheres da minha geração, com mãe dona-de-casa e pai provedor, do que me tornar dependente de um homem. Quarenta e um anos se passaram, a mulher conquistou amplos espaços no mundo e no mercado de trabalho (ainda que sigamos lutando por equidade salarial), mas não consigo evitar que as palavras de Colette Dowling, e sobretudo o título do livro, ecoem em minha cabeça após assistir a O Golpista do Tinder na Netflix.

Não há nada mais desempoderador para uma mulher do que ver a si mesma como uma princesa da Disney, e no entanto é nesse imaginário que muitas mães mergulham suas filhas. Como criar mulheres independentes se desde a infância se incute nelas a dependência?

O documentário conta a história de três alvos do trapaceiro serial Simon Leviev, que se passava por filho de bilionário de diamantes para seduzir e depois, graças a uma trama rocambolesca, “pedir emprestado” vultosas quantias de dinheiro às suas vítimas. “Cavalheiro”, cheio de atenções para com as escolhidas, a quem envolvia com viagens internacionais e jantares caros, Simon era a personificação do “príncipe encantado”, a não ser pela cafonice das roupas de marca, dos mocassins e da cara de coxinha. Jesus, como elas não desconfiaram?, eu me perguntava, após assistir àquilo com raiva e repugnância. “Laranja madura na beira da estrada ou tá bichada, ô zé, ou tem marimbondo no pé”, gente.

Resposta: complexo de Cinderela. “Como Cinderela, as mulheres de hoje ainda esperam por algo externo que venha transformar suas vidas”, escreveu Colette Dowling em sua “auto-ajuda” de décadas atrás. O que me espanta é ver mulheres jovens, bonitas, bem sucedidas, ainda terem essa mentalidade em outro século, em pleno 2022. O que me choca é perceber o estrago que faz todo esse mundo aparentemente inofensivo de princesas Disney povoando a cabeça das meninas desde a mais tenra idade, criando expectativas irrealistas e deixando-as vulneráveis a aproveitadores com talento para a mentira.

Acham que é exagero meu? “Estou atrás daquele amor avassalador, aquele da infância. As primeiras lembranças que tenho do amor são da Disney. Eu memorizei toda a fita de A Bela e a Fera. Eu sabia todas as músicas. Eu adoro a Bela. É uma garota de cidade pequena, como eu, esperando algo maior. Ela conhece uma pessoa, então o salva em certo sentido, ou ele a salva. A sensação de um príncipe vindo te salvar não sai de você. E mesmo sabendo que não é real, ainda fica um pouco em você. Acho que todo mundo tem um pouco de esperança, no fundo, de que será tão mágico quanto eles estavam retratando”: quem fala assim, logo no comecinho do documentário, é a norueguesa Cecilie, uma loira atraente de 29 anos, de quem o golpista afanou 250 mil dólares.

Não por acaso, de todas as princesas Disney, Cecilie escolhe logo Bela, na real uma vítima da síndrome de Estocolmo: a doce moça que se apaixona pela Fera que a levara da casa do pai contra a vontade, ou seja, que a raptou. O amor redentor da princesa trata de transformar magicamente a feia besta sequestradora no príncipe encantador, gentil –e lindo. Me pego pensando em quantas mulheres não se deixaram levar por esta ilusão ao entrar em relações tenebrosas com homens abusadores a quem tinham a fé de “domar” em nome do tal amor romântico.

Simon Leviev construiu sua imagem nas redes sociais como a do “príncipe” herdeiro em busca da mulher ideal e, sociopata que é, com total consciência de que suas vítimas queriam enxergá-lo assim. Ele está à caça de mulheres como Cecilie, adultas infantilizadas pela crença em contos de fadas. A certa altura, o golpista aparece em uma das fotos stalkeadas no instagram dele pela sueca Pernilla, outra vítima, vestindo uma camiseta com a inscrição “Prince” gravada. “Você tem uma camiseta escrito ‘prince’? Perfeita para você”, ela escreve. Pernilla, que não chega a se envolver romanticamente com Simon, mas que também vai lhe “emprestar” grandes quantias de dinheiro, o identifica no whatsapp com um emoji de príncipe ao lado do nome.

O “príncipe” Simon Leviev. Foto: reprodução instagram

Não há nada mais desempoderador para uma mulher do que ver a si mesma como uma princesa da Disney, e no entanto é nesse imaginário que muitas mães mergulham desde cedo suas filhas, com festas temáticas, fantasias de cetim e saias rodadas de tule, tiaras de pedraria. Como criar mulheres independentes se desde a mais tenra infância se incute nelas a dependência? Não deve ser fácil para as mães de meninas fugir desse padrão numa sociedade de consumo onde essas imagens são impostas o tempo todo, quer elas queiram, quer não.

Mas criar meninas livres de estereótipos de gênero passa sem dúvida pelo desafio de conseguir afastá-las da ideia de que são princesas indefesas à espera de um homem que as resgate, em vez de estimular uma fantasia que nada tem de “lúdica”, “mágica” ou “inocente”. Me parecem conceitos incompatíveis se acreditar princesa e estar preparada para enfrentar o hostil universo dos relacionamentos virtuais. Um mundo onde as mulheres nem sequer cogitem estar em busca do príncipe encantado se tornaria inóspito para ogros se passando por príncipes; pilantras como Simon Leviev teriam muito mais dificuldade em encontrar presas no tinder ou no raio que o parta.

 

 


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(5) comentários Escrever comentário

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x em 17/02/2022 - 11h06 comentou:

SM, para mim, não há nenhum problema se a mulher quer ser uma executiva bem sucedida ou uma dona de casa. Aliás, conheço muitas donas de casa no “velho padrão” conservador marido provedor e mãe dona de casa que cuida dos filhos, que vivem casamentos extremamente felizes. Minha própria mãe, nascida em 1962 é um exemplo assim. Isto é tão verdade, que eu, crescendo num lar exemplar (agradeço a Deus por isso), gostaria de hoje ter uma família minha assim, neste formato antigo, mas isso é extremamente difícil nos dias de hoje, principalmente porque financeiramente é muito difícil sustentar uma família só o marido provendo, além do mais, as mulheres hoje estudam (na verdade são maioria nas universidades, até em profissões tradicionalmente de homens, como Agronomia) e obviamente não vão ficar em casa cuidando de crianças e com MBA/Doutorado e com talento desperdiçado.

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Eugênio BH em 17/02/2022 - 22h08 comentou:

e eis que tudo está perdido, Cynara…

Quando nasci, veio um diabo e disse:

vai lá, cara, ser sapo na vida!

Envelheci feito um bufo, casei com uma bruxa e chamei a filha de princesa.

Que cresceu e virou uma terrivelmente feminista,

chutou o balde com a Madame em Min,

mas casou-se com um anjo safado, um chato de um querubim,

que chama ela de princesa.

Fico puto da vida.

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Sergio Vauduro em 01/03/2022 - 20h05 comentou:

Quando olhamos para o mundo animal, principalmente os mamíferos, percebemos que boa parte do que está na cabeça das ditas “feministas” é desprovido de fundamento.
A escolha do macho-alfa é a maneira mais inteligente de preservar a si e a sua cria, num momento de grande fragilidade, que é o período desde a cópula até a emancipação do filhote, e isso está encravado no instinto animal desde milhões de anos atrás.
Mas se as feministas acham o contrário, provavelmente não estão preocupadas em reproduzir, ou dar uma qualidade mínima à sua cria.

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Ademar Amâncio em 05/03/2022 - 17h45 comentou:

Confesso que comprei o livro na época,tenho até hoje,”Complexo de Cinderela”,rs.

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Eric Souza dos Santos em 09/03/2022 - 10h24 comentou:

Eu poderia ampliar a questão e dizer do famigerado mito do amor romântico. Isso é jogado o tempo todo em filmes, comerciais, músicas e outras mídias. Como se dele tudo dependesse na vida. O complexo de Cinderela não seria um subproduto disto? Pergunto-me.

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