Socialista Morena
Cultura

O músico Mussum que o “trapalhão” Mussum eclipsou

O lado menos conhecido e brilhante do humorista: tocando reco-reco e ditando o ritmo nos Originais do Samba

Mussum no programa Ensaio da TV Cultura em 1972. Foto: reprodução youtube
Cynara Menezes
21 de novembro de 2018, 18h35

Dizem que todo palhaço traz dentro de si uma melancolia. A melancolia de Antonio Carlos Bernardes Gomes era ter largado o reco-reco para ser “trapalhão” em tempo integral. A bem da verdade, o carioca da Mangueira nunca deixou inteiramente a música, mas quando foi-se embora deste mundo aos 53 anos, em 1994, o que se ouviu nos noticiários foi “morre o humorista Mussum”. O músico brilhante dos Originais do Samba, que tocou com Baden Powell, Jair Rodrigues e Elis Regina, ficou em segundo plano.

Não há quem não conheça Mussum e seus impagáveis bordões, com as palavras terminadas em “IS”, como “forévis”, para bunda, “suco de cevadis”, para cerveja, ou a exclamação “cacildis!”. As novas gerações ainda morrem de rir com os esquetes protagonizados pelo comediante nos Trapalhões que encontram no youtube, como este do leite, com quase 7 milhões de visualizações.

Mas, entre meados dos anos 1960 e 1979, quando Mussum teve que escolher entre os dois grupos, o de samba e o de humor, os Originais do Samba eram um dos conjuntos mais populares do país –o primeiro de samba a gravar um LP, em 1969, com Bidi na cuíca, Lelei no tamborim, Chiquinho na voz e ganzá, Rubão no surdo e Bigode, o último remanescente em atividade, no pandeiro. Os Originais são também considerados o primeiro grupo de samba a se apresentar na casa de shows Olympia, em Paris.

Mussum é apontado pelos críticos como um dos maiores tocadores de reco-reco da história da MPB. Com os Originais, gravou 12 discos e ganhou três discos de ouro. “O Mussum era 50% do grupo, contava casos, piadas. A saída dele foi como Pelé quando saiu do Santos”, compara Bigode, hoje aos 77 anos ainda fazendo shows com o grupo.

“Não brigamos, mas foi uma perda muito grande. Lembro que uma vez a gente foi se apresentar e umas moças ficaram gritando: ‘Mussum, Mussum!’ Ele tocava muito. Ninguém toca reco-reco como Mussum até hoje, mesmo porque ele fez o próprio instrumento, que antes era de bambu e ele criou um reco-reco com chapa de avião.”

Para Bigode, a opção pelos Trapalhões foi motivada por dinheiro. “A questão foi financeira. Com os Trapalhões ele tinha mais atividade, o ganho era maior, né? Tudo que dá grana é melhor. Mas Mussum nasceu para ser sambista, era muito melhor sambista do que comediante. Mas teve que optar porque foi para o Rio fazer o programa e a gente sempre ficou em São Paulo.”

Surgido em 1960 como Os Sete Modernos do Samba e no ano seguinte transformado em Os Originais do Samba, seus hits até hoje incendeiam as pistas de qualquer festa que se preze. Quem nunca sambou ao som de Falador Passa Mal é doente do pé.

Também superpresente nas baladas de boa música brasileira desde o início dos anos 2000, Tenha Fé é uma das muitas parcerias do grupo com Jorge Ben. “Todo ano o Jorge escolhe uma musiquinha e dá para nós”, contou Mussum em entrevista nos anos 1970. Cadê Tereza, Vou Me Pirulitar e Chegando Fevereiro foram outros três presentes do Babulina para os Originais.

Em 1972, o grupo lançou seu disco mais aclamado, O Samba É a Corda, os Originais a Caçamba, com duas faixas que explodiriam nas paradas de sucesso, Do Lado Direito da Rua Direita e Esperanças Perdidas.

Como sambista, Mussum também era engraçado, contava piadas, mas tinha um jeito reservado (profundo?) nas entrevistas que o diferenciava bastante do malandro cachaceiro que formou com Renato Aragão, Dedé Santana e Zacarias o quarteto inesquecível da televisão. No especial Ensaio, da TV Cultura, de 1972, é um Mussum sério, compenetrado, que aparece contando as aventuras e desventuras dos Originais do Samba, que excursionaram por toda a América Latina no final dos 1960 como Los Siete Diablos de la Batucada.

O programa é maravilhoso –e imperdível para quem quer conhecer e tentar entender o lado músico do Trapalhão.

O jornalista Juliano Barreto, autor da biografia Mussum Forévis, lançada em 2014, acha que, embora tenha transformado o humor em seu ganha-pão, Antonio Carlos nunca deixou de ser músico. Juliano conversou com o site.

Socialista Morena – Mussum recusou dois convites para se tornar humorista até ser convencido por Dedé Santana. Por que relutou? Preferia continuar tocando reco-reco?
Juliano Barreto – Mesmo depois de todos os anos com os Trapalhões, ele sempre se considerou músico, não ator ou humorista. A carreira dele como músico foi brilhante, o reco-reco era uma maneira de conduzir a cadência dos outros instrumentos. Geralmente o reco-reco é só acompanhamento, mas no caso dele, ele acelerava e desacelerava o tempo da música com o reco-reco. Por isso, largar tudo para ser comediante nunca foi uma ideia que ele abraçou completamente. Ao longo dos anos ele tocou com artistas como Elis Regina, Elza Soares, Jorge Ben, Martinho da Vila. Mesmo depois de sair dos Originais, ele gravou discos solo e se manteve próximo do dia a dia da Mangueira.

Mussum tocando reco-reco com os Originais em 1972. Foto: Armando Borges/CEDOC FPA

SM – Você acha que o sucesso, inclusive financeiro, como comediante fez ele deixar a carreira de músico em segundo plano?
JB – Acho que a rotina dos Trapalhões era muito pesada para permitir qualquer outro projeto paralelo… ou mesmo vida pessoal. Eles gravavam os programas durante a semana e aos finais de semana rodavam o interior do Brasil fazendo shows em circos e ginásios. Duas vezes por ano, todo ano, eles gravavam os filmes para o cinema. Então era uma agenda muito difícil de conciliar. Era impossível, por exemplo, fazer um show com os Trapalhões em Porto Alegre no Estádio do Beira-Rio para 50 mil pessoas de tarde e de noite estar em Salvador tocando com os Originais.

A carreira dele como músico foi brilhante. Geralmente o reco-reco é só acompanhamento, mas no caso dele, ele acelerava e desacelerava o tempo da música com o reco-reco. Largar tudo para ser comediante nunca foi uma ideia que ele abraçou completamente

SM – Mussum demonstrou, em alguma entrevista, arrependimento pela troca ou ele nunca problematizou isso?
JB – A saída dele dos Originais, banda que criou e desenvolveu desde o início ate o sucesso, foi sofrida. Não teve briga nem nada, mas foi uma decisão difícil de ser tomada. Não diria que ele teve arrependimento, porque  conseguiu se manter próximo do mundo da música mesmo após os Trapalhões. Fez os discos solo dele e estava se preparando para gravar mais coisas.

SM – Você diz que ele conhecia jazz, música latino-americana e os grandes crooners norte-americanos… De onde veio este contato com a música?
JB – Na época dos “Sete Modernos”, o grupo fazia o típico “Samba para exportação”, eram atrações em teatros e casas de show mundo afora. Mussum fez turnês por toda a América Latina, Europa e, no Rio de Janeiro, tocava no Golden Room do Copacabana Palace, que era um dos palcos de maior prestígio da cidade. Isso tudo permitiu um intercâmbio cultural muito grande.

SM – Você se surpreendeu ao descobrir a importância do grupo? 
JB – Na verdade eu queria falar da pessoa, obviamente tem toda a nostalgia pelo trabalho com os Trapalhões e eu sabia que os Originais tinha feito muito sucesso, mas não conhecia as parcerias e a fase inicial do conjunto, mais séria. Eu conhecia o sucesso deles com ‘Tragédia no fundo do Mar’, ‘Pela dona do Primeiro Andar’ etc. Acho que essa é mais ou menos a ideia da maioria das pessoas, que Originais do Samba se resume ao bom humor, algo como Molejo. Não estou dizendo que o lado mais leve e bem humorado seja menor, não é. Mas o que me surpreendeu foi ver os Originais tocando com Baden Powell, Mussum gravando músicas do Vinicius de Moraes, sem falar das parcerias com Jorge Ben, Elis Regina, Jair Rodrigues.

No começo, Originais e Trapalhões se misturavam, com participações do grupo no programa humorístico em que Mussum inclusive aparecia tocando seu reco-reco em grande estilo.

No esquete Audição, os Trapalhões tiram a maior onda do conjunto de samba, submetendo-os ao “crivo” de Didi Mocó, para desespero (e certo constrangimento) de Mussum.

Outro traço que evidencia a ligação de Mussum com o samba mesmo como Trapalhão é que, como seu personagem era um amante de “mé”, muitos quadros se passam em bares cariocas, com um sambinha rolando nas mesas.

Nas entrevistas que deu, Mussum sempre destacou seu amor pela música e o fato de não se considerar um humorista. “No início sempre levei televisão, cinema, sempre achei uma coisa muito séria. Eu sempre tive muito respeito por humoristas e cômicos famosos. Eu não me acho humorista. Humorista é o Jô Soares, Chico Anysio, Dedé Santana, Zacarias… Os caras se transformam, tem vários tipos. Eu sou um cômico, um caricato. O humorista é o que faz e escreve. Eu não escrevo, só faço”, disse à repórter Paula Saldanha, em 1981.

Eu não me acho humorista. Humorista é o Jô Soares, Chico Anysio, Dedé Santana, Zacarias... Os caras se transformam, tem vários tipos. Eu sou um cômico, um caricato

A cineasta Susanna Lira, que está finalizando um documentário sobre o artista, acha que ele nunca se recuperou de ter optado pelo humor. “Eu vejo o Mussum como um grande músico e os Originais do Samba foi o lugar onde ele se realizou como artista. A maior tristeza da vida dele foi ter que abrir mão do grupo para se dedicar ao trabalho de comediante. A música era tudo para ele, mas o sucesso dos Trapalhões foi algo tão avassalador que ele não teve como manter a carreira em paralelo”, diz Susanna. “A agenda dos Trapalhões era algo alucinante. Além das gravações dos programas, eles faziam filmes e viajavam pelo país inteiro fazendo shows em circos e estádios. Acho que a dura rotina o obrigou a tomar uma decisão já que o corpo já apresentava sinais de fadiga e cansaço.”

Em um trecho do programa Globo Repórter sobre os Trapalhões, em 1988, Mussum deixa trair certo arrependimento: “Não acredito que uma pessoa que tivesse vivido da música como eu vivi, abandonar essa coisa boa que vocês estão vendo aí… Gente, eu não sei não, mas dá uma saudade fia da mãe”.

O que teria sido de Mussum se tivesse optado pelos Originais e não pelos Trapalhões? Nunca saberemos. Como comediante, era também um gênio e se tornou um dos negros de maior destaque da televisão brasileira. Mas não sem alguma polêmica: as piadas sobre a cor de sua pele no programa atualmente seriam consideradas racistas. Era chamado pejorativamente, sobretudo por Renato Aragão, de “crioulo”, “fumê”, “grande pássaro”, “morcegão”, “fuscão preto”, “azulão”, “cromado”, “urubu sem asa”, “Tia Anastácia”… “Os Trapalhões tinham um jeito muito próprio de se expressar e como não havia ainda o ‘politicamente correto’, eles faziam piadas que hoje jamais poderiam ir para o ar”, diz Susanna.

Há quem ache, com o olhar de hoje em dia, que o humor dos Trapalhões envelheceu. Já a música dos Originais do Samba, não. Mussum ficaria orgulhoso em saber. Ou melhor, orgulhosis.

 


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(12) comentários Escrever comentário

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Guilherme em 21/11/2018 - 23h57 comentou:

Foi a melhor formação de Os Trapalhões : Didi, Dedé, Mussum e Zacarias; depois lá pras bandas dos anos 90 começaram a encher de gente que não tinha talento nenhum para o humor aí ficou um programa sem graça nenhuma ! Os Trapalhões nas décadas de 1970 e 1980 foi sem sombra de dúvida o melhor programa de humor da televisão brasileira ! Os inesquecíveis Mussum e Zacarias causaram muitos risos e alegrias nas noites de
domingos ! Que falta eles fazem !!!

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Thiago em 22/11/2018 - 09h08 comentou:

Sabia que o Mussum até gravou um samba “transgêneris”? =)

https://www.youtube.com/watch?v=osfvwXhn7kQ

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Rossi em 22/11/2018 - 10h02 comentou:

Esperança perdida é antológica!

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Sergio em 22/11/2018 - 11h55 comentou:

Saudades dos Trapalhões!

Todo passeio que meus pais programavam, a criançada da casa ficava agoniada ara chegar antes das 19h.

Morreu muito jovem! 53 anos??? Mussum faz falta! E brilhante músico também!

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Ivan Matos em 22/11/2018 - 16h40 comentou:

Simplesmente. Gênio no Humor e na música.Saudades dos seus Bordões e da magnífica Música dos Originais do Samba.

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Maria em 22/11/2018 - 19h16 comentou:

Excelente matéria! Não sabia desses detalhes todos…

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Marcelo Monarco em 22/11/2018 - 20h57 comentou:

Olha, nunca deixei comentário em rodapé de qualquer matéria que eu tenha lido mas, vocês foram realmente incríveis com essa abordagem, em tudo! O texto, o cuidado com os vídeos, a volta ao passado… Isso foi muito foda!
Não sei que assina a matéria mas deixo aqui os meus mais sinceros e humildes aplausos (de pé) e agradecimentos por essa matéria. MUITO OBRIGADO!

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    Cynara Menezes em 23/11/2018 - 15h58 comentou:

    está no alto do texto! cynara menezes. obrigada

Davi Martins da Silva em 23/11/2018 - 03h20 comentou:

Matéria linda sobre o Mussum ou Carlinhos da Mangueira como também era chamado no Rio de Janeiro.
Só quem viveu os anos 80 para saber como era bom ouvir os Originais do Samba em festas de quintais….

Aos criadores desta matéria meus parabéns, só um complemento – Os Originais do Samba teve como primeiro nome Os sete Modernos do Samba e na Espanha, lugar onde também fizeram shows, eram chamados de Los Sete Diablos de la Batucada!!!!!!

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    Cynara Menezes em 23/11/2018 - 15h57 comentou:

    obrigada! estas informações constam do texto, viu?

Kátia Alexandre em 23/11/2018 - 18h10 comentou:

Um prazer ler matérias desse nipe!Completa em todos os sentidos!Parabéns a todos que fizeram parte desse trabalgo primoroso trazendo de volta um dos melhores momentos do Mussum, principalmente como músico de primeira que era e que deixou uma lacuna enorme quando deixou Os Originais do Samba!

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Audi em 25/04/2020 - 21h14 comentou:

Um amigo me indicou “Heróis da Liberdade” entao fui parar no MPB Especial TV Cultura! Ainda estou atordoado com o ser humano MÚSICO Mussum! Que força! Que vibraçao! Raça, com um Reco-Reco na mao! Que banda! Que história! Pela primeira vez o samba me arrebatou! A postura de Band Leader do Mussum é Assombrosa! Em certo momento, apenas num olhar, ele conduz o final de um solo do pianista! Um Retrato Antológico da Força da Raça do Povo Negro Brasileiro Maravilhoso MUSSUM…))))

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