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“Progresso”: nordestino troca jumento por moto e pele de jegue vira negócio da China

Pobre jumento, deixou de ser burro de carga para ser esfolado em frigoríficos e agora corre risco de extinção

Foto: Rosa Melo/CC
Cynara Menezes
30 de janeiro de 2020, 17h57

Na Apologia ao Jumento, que compôs em parceria com José Clementino em 1968, o rei do baião Luiz Gonzaga cantava que o jumento é nosso irmão:

O jumento sempre foi
O maior desenvolvimentista do sertão!
Ajudou o homem na lida diária
Ajudou o homem
Ajudou o Brasil a se desenvolver

Arrastou lenha
Madeira, pedra, cal, cimento, tijolo, telha
Fez açude, estrada de rodagem
Carregou água pra casa do homem
Fez a feira e serviu de montaria
O jumento é nosso irmão!

E o homem, em retribuição
O que é que lhe dá?
Castigo, pancada, pau nas pernas, pau no lombo
Pau no pescoço, pau na cara, nas orelhas
Ah, jumento é bom, o homem é mau!

Os tempos mudaram, o Nordeste viveu o boom econômico dos anos Lula e Dilma, e o jumento foi substituído pelas motocicletas. O que aconteceu com o jegue, coitado? Se livrou da sina milenar de carregar peso nas costas, é verdade, mas acabou abandonado por quem tanto serviu, e passou a vagar pelas estradas, causando acidentes. De melhor amigo do sertanejo, subitamente o jumento virou um problema, um estorvo. Era preciso se livrar dele.

Algum capitalista então teve o insight: aquele dócil animal sem dono podia se transformar num negócio da China. Em vez de alimentado e cuidado, a recompensa que o homem deu ao burro após tantos anos de labuta foi abatê-lo em frigoríficos para vender sua carne e pele ao país asiático. Em 2016, quando o abate foi permitido pelo Ministério da Agricultura, foram exportados cerca de 25 mil toneladas de carne e pele de jumento; em 2018, este número saltou para 226 mil toneladas.

O risco de extinção do jumento é iminente desde que, em julho de 2017, a Bahia começou a exportar carne e couro de jumento à China, com meta de enviar 200 mil unidades por ano. Se o ritmo de abate alcançar a expectativa, a espécie pode desaparecer em menos de cinco anos no Nordeste

A ingratidão do homem com o jumento não passou batida para as entidades defensoras dos direitos dos animais. Em 2012, a atriz e ativista Brigitte Bardot enviou uma carta à presidenta Dilma Rousseff pedindo que interviesse para evitar a matança. “Eu, que amei tanto o Brasil, estou indignada de ver este país colaborar com a China para matar, a cada ano, 300 mil burros explorados pelo homem e que deveriam ser deixados em paz”, escreveu Brigitte. “Como presidente, mulher, ser humano, você não pode aceitar esta vergonhosa barbárie, que manchará profundamente a imagem do Brasil.”

Dilma não ouviu o apelo. Pelo contrário. Sua ministra da Agricultura, Katia Abreu, ficou entusiasmada com a demanda dos chineses por carne e pele de jegue, e fez campanha pela liberação da exportação.

Em 2017, a senadora chegou a experimentar a “iguaria” em jantar oferecido pelo embaixador do país.

A exportação de carne e pele de jegue para a China só seria suspensa em dezembro de 2018, graças a uma liminar, obtida pelas entidades de defesa dos animais, que proibia os frigoríficos de abater jumentos na Bahia e impedia a exportação da carne, após denúncias de maus tratos. Em setembro de 2019, a liminar foi derrubada por decisão do TRF-1 a pedido da Advocacia Geral da União, e o abate de jumentos foi retomado.

Os chineses utilizam a carne do jumento em acepipes como os que encantaram Katia Abreu, mas o que lhes interessa mesmo é a pele do animal, com a qual fabricam o ejiao, uma gelatina que teria propriedades medicinais. Produto em ascensão na China, em três anos, de 2013 a 2016, a produção anual de ejiao, utilizado no tratamento de anemia e para melhorar a circulação sanguínea, aumentou de 3.200 para 5.600 toneladas. Haja pele de jegue para tanta gelatina.

Fonte: The Donkey Sanctuary

Segundo um estudo da ONG Donkey Sanctuary, estima-se que 4,8 milhões de jumentos tenham que ser abatidos anualmente para satisfazer a demanda dos chineses por ejiao. A indústria local é capaz de suprir aproximadamente 1,8 milhão dessas peles; os 3 milhões restantes são obtidos no mercado global de pele de jumento. Se continuar nesse ritmo, acredita-se que metade dos jumentos do mundo possam desaparecer nos próximos cinco anos. A China já conseguiu extinguir 76% de seus próprios jegues, por isso a troca dos jumentos pelas motos no Nordeste veio a calhar. O Brasil teria perdido 28% dos jumentos, Botswana, 37%, e o Quirguistão, 53%.

A desculpa do “controle populacional” dos animais não pode ser dada como álibi para a matança, porque o crescimento da população de jumentos é ínfimo. “Os jegues são muito lentos para reproduzir. A gestação de um burro dura um ano e eles demoram muito a alcançar a maturidade. Suas taxas de fertilidade também são muito pobres em cativeiro”, explicou Faith Burden, diretora da ONG, ao jornal The Guardian. Como para fabricar a tal gelatina não é necessário que o jumento esteja em bom estado, pipocam denúncias de maus tratos.

Como os ferimentos e as doenças não afetam a qualidade da pele, os comerciantes não veem motivos para tratar os jumentos de forma humanitária. A morte de um jumento por ferimentos, doença, sede, fome ou estresse é muitas vezes vista com bons olhos, pois assim não há gastos com o abate

“O fornecimento de animais é muitas vezes feito sem nenhum tipo de controle, com fêmeas prenhes em estado avançado de gestação, filhotes muito jovens e jumentos doentes e feridos sendo comercializados de forma indiscriminada. Os animais são frequentemente transportados durante vários dias em caminhões superlotados, sem comida, água ou descanso. Em alguns casos, até 20% dos jumentos chegam mortos ao abatedouro. Outros chegam com membros quebrados ou lesionados, ou com feridas infectadas, ou em estágio avançado de desnutrição”, diz o estudo do Donkey Sanctuary.

“Como os ferimentos e as doenças não afetam externamente a qualidade da pele, os comerciantes locais não veem motivos para tratar os jumentos de forma humanitária. A morte de um jumento por ferimentos, doença, sede, fome ou estresse é muitas vezes vista com bons olhos, pois assim não há gastos com o abate, mas a pele ainda pode ser processada.”

Em 2018, numa fazenda arrendada por empresários chineses em Itapetinga-BA, vídeos feitos por moradores da região denunciaram que mais de 800 jumentos agonizavam no local, de fome e de sede. Outros 200 foram encontrados mortos.

Uma reportagem feita com apoio da ONG britânica, e publicada pelo Repórter Brasil em dezembro, afirma que o risco de extinção do jumento no Nordeste é iminente desde que, em julho de 2017, a Bahia começou a exportar carne e couro de jumento para a China, com meta de enviar 200 mil unidades por ano. “Em um ano e quatro meses após o acordo, mais de 100 mil jumentos foram mortos nos três frigoríficos autorizados pelo governo federal –nos municípios de Amargosa, Itapetinga e Simões Filho. Se o ritmo de abate chegar à expectativa chinesa, a espécie pode desaparecer em menos de cinco anos no Nordeste”, diz o texto.

“Os jumentos estão indo de brinde para os chineses”, denunciou ao Repórter Brasil Sônia Martins Teodoro, representante da ONG SOS Animais de Itapetinga, que acompanha denúncias de maus-tratos aos jegues. “O acordo, segundo ela, foi um agrado dos governos brasileiro e baiano para atrair investimentos. A Bahia espera abrigar grandes obras de infraestrutura chinesas nos próximos anos, como parque industrial e a revitalização do porto de Aratu, construção de ponte ligando Salvador a Itaparica e da Ferrovia de Integração Oeste-Leste“, diz a reportagem.

Em janeiro de 2019, uma denúncia anônima levou à descoberta da morte de 200 jumentos por falta de água e comida em Canudos, na Bahia. Os animais seriam exportados para a China e acabaram mortos por fraqueza e inanição

No final do ano, a Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara dos Deputados realizou uma audiência pública para debater os maus tratos e o abate dos jumentos, e pelo menos regulamentar a atividade. “O abate de jumentos no Brasil visa atender um anseio meramente comercial e acaba negligenciando questões sanitárias e o bem-estar dos animais”, disse o deputado Célio Studart (PV-CE), que solicitou a audiência.

Studart contou que, em decorrência de denúncia anônima feita em janeiro de 2019, descobriu-se “o estado de insalubridade e calamidade” que resultou na morte de 200 animais por falta de água e comida em Canudos, na Bahia. “Os jumentos seriam exportados para a China e acabaram mortos por fraqueza e inanição”, informou. Segundo dados de 2013 do IBGE, 97% dos cerca de 900 mil jumentos brasileiros estão no Nordeste; metade deles na Bahia.

Pobre jegue! Deixou de ser burro de carga para ser abatido e esfolado em frigoríficos, e agora corre risco de desaparecer da face da Terra. Como pode o homem ser tão mal agradecido?

 


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Halilton em 07/02/2020 - 08h57 comentou:

O que esperar de um estado que é governado há 12 anos por um partido entreguista e neoliberal?

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