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Quem pôde ter uma Barbie? Filme da boneca é feminista –mas não anticapitalista

Roteiro bem construído enfoca gênero, mas ignora questões de classe: longe disso, corrobora a ideia de que o mundo é composto apenas pelos ricos

Cena do filme Barbie. Foto: divulgação
Liliane Machado
07 de agosto de 2023, 13h21

Nunca fui fã de Barbie. Minha geração brincava com bonecas como Beijoca, Guigui, Mãezinha –destinadas às crianças pertencentes à classe média– ou com aquelas bonecas de plástico duro, sem articulações, sem cabelos e, óbvio, com pouca chance de manipulação –que estavam destinadas às crianças do proletariado.

Dessa forma, fui ver o filme com curiosidade, mas alheia ao burburinho que a obra está causando na geração abaixo dos 40 anos. Também fui movida pelo interesse de falar mal do filme, visto que nutro antipatia pela boneca que, em suas primeiras versões, parecia uma dondoca frívola, o que, para nós, feministas, cheirava muito mal, pois nos levava a crer que seria sustentada por um homem tóxico.

Mas vamos aos fatos ou ao filme, para ser mais precisa. O início de Barbie é impactante. A diretora faz alusão à abertura de 2001, Uma Odisséia No Espaço para mostrar a revolução na indústria de brinquedos quando ela começou a produzir bonecas com cérebro e não apenas com rostinho de anjo, tez clara e vestidos de princesa. As bonecas passaram a ter profissão, como veterinária, médica, engenheira e, por consequência, a  representar mulheres em busca da construção de uma carreira e que não se satisfazem com as lidas domésticas e maternais.

Pontuada a revolução feminista na criação das bonecas, a história nos leva à Barbielândia, cidade-paraíso com casas e praias de plástico, reproduzindo o mundo dos brinquedos, tendo o rosa como cor predominante. Há Barbies ganhadoras de prêmio Nobel de literatura, médicas, presidentas, etc., mas a lente da diretora Greta Gerwig (Lady Bird, Adoráveis Mulheres) está direcionada para a Barbie Estereótipo, personagem central que começa a apresentar defeitos.

Linda, loura, olhos claros, cabelos lisos e longos (Margot Robbie, escolha perfeita para a personagem), ela observa um defeito no pé, o surgimento de celulite e, não bastasse, começa a ter uma crise existencial ao pensar na possibilidade da morte.

O roteiro bem construído nos levará pela busca tenaz da heroína pela cura dos seus males. E, como todas as heroínas, Barbie encontrará vários obstáculos no seu caminho, será perseguida por policiais, assediada por homens de carne e osso e desprezada por garotas adolescentes. É demais para a Barbie Estereótipo, cujo rosto de feições perfeitas se vê diante de um mundo mesquinho, dominado por machos tóxicos.

O filme traz algumas cenas cantadas, que lembram musicais decadentes, possivelmente uma ironia dos roteiristas acerca de obras dirigidas às crianças, predominantes nos Estúdios Disney. Quando são os Ken que protagonizam a cantoria, alude às boy bands masculinas dos anos 1990, como Backstreet Boys e N’Sync, esta última citada diretamente na trama.

É preciso pontuar: o feminismo de Barbie não toca em questões de classe, longe disso, corrobora a ideia de que o mundo é composto apenas por uma classe, a dos ricos. A propósito: as bonecas do filme estão sendo vendidas entre 700 e 1000 reais, em média

Nesses momentos, diminui o interesse pelo filme e nossa atenção despenca. Ela volta a crescer nas cenas que mostram a relação tumultuada entre a dona da Barbie no mundo real, a mãe da garota e a própria boneca. A criança virou adolescente, não brinca mais de Barbie, sua mãe está envelhecendo e isso a angustia e a faz querer retornar às bonecas e Barbie, por sua vez, sente que algo mudou inexoravelmente na sua vida, antes perfeita.

A cineasta Greta Gerwig já tinha explorado a relação mãe e filha sob uma perspectiva de conflitos e ruídos no filme Lady Bird, A Hora de Voar. A maternidade perde o glamour em que está envolta no sistema patriarcal e ganha contornos realistas e complexos.

Em Barbie, a questão não é tão explícita, mas retorna, aliada à possibilidade de sororidade (cumplicidade e ação política orquestrada por mulheres) e de masculinidade tóxica (que engloba todas as formas de violência contra as mulheres), noções produzidas pelos movimentos feministas e de gênero para explicar as desigualdades entre os gêneros e das quais Gerwig e o roteirista lançam mão. Foi o que bastou para enfurecer os defensores do patriarcado.

A odisseia da Barbie Estereótipo ganha o apoio de suas amigas quando o predomínio feminino em Barbielândia é posto em perigo. Humanas também aderem à luta contra o domínio masculino. Clichês sobre feminilidade e a perfeição são derrubados. O desenlace da história talvez não agrade às aficionadas pela Barbie Estereótipo, mas põe em relevo, com astúcia argumentativa, as possibilidades de que as bonecas, além de profissionais empoderadas, também possam fazer suas próprias escolhas no mundo da fantasia.

Mas, é preciso pontuar: o feminismo de Barbie não toca em questões de classe, longe disso, corrobora a ideia de que o mundo é composto apenas por uma classe, a dos ricos.

A propósito: as bonecas do filme estão sendo vendidas entre 700 e 1000 reais, em média. Quantas meninas podem ter uma?


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Andréa Glória em 22/08/2023 - 14h41 comentou:

Ei, Lili! Sempre com textos excelentes. Morri de rir do trecho: “…fui movida pelo interesse de falar mal do filme, visto que nutro antipatia pela boneca…”. Sua cara. Adoro! Ainda não assisti o filme, mas depois que li sua crítica, fiquei bem mais curiosa. Deu saudade de quando lia as suas matérias no jornais impressos. Haha! Talvez ainda tenha algumas guardadas. Adorei encontrá-la por aqui. Socialista Morena e suas colaboradoras com o DOM da escrita, arrasando. Beijocas! 🙂

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