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Cultura

Se eu tivesse uma varanda (ou uma janela interessante). Por Elika Takimoto

Sinto falta de ver coisas. Para convencer Pipo de que meu desejo procede e que estou certa, resolvi registrar tudo o que estamos perdendo

Detalhe do quadro Muchacha en la Ventana, de Salvador Dalí, 1925
Elika Takimoto
14 de setembro de 2023, 17h43

Morei por 45 anos na mesma rua em Madureira. Sempre em uma casa. Primeiro na casa de mamãe e de papai –que é uma casa virada para a rua– e, depois, em uma vila. Há cinco anos, moro no Catete em um apartamento alugado, de fundo e sem varanda.

Sinto falta de ver coisas. Tenho reclamado para Pipo que, no nosso próximo cantinho, tem que ter uma varanda com uma vista para seja lá o que for mas que não sejam somente essas janelas de outros apartamentos que sequer ficam abertas para eu me distrair com a vida alheia.

Pipo diz que é besteira. Para provar que está certíssimo, Pipo observa todos os dias pela janelinha da área de serviço as varandas –sempre vazias– do prédio ali distante. Outro dia, veio me dizer que viu, de fato, gente na varanda: uma pessoa varrendo, um pintor e um bolsonarista gritando algo segurando a bandeira do Brasil em pleno 7 de setembro. Ou seja: varanda só serve para dar trabalho. Ninguém usa. Diz Pipo em um esforço inútil para me deixar menos desolada.

Sigo ávida para olhar alguma coisa e fico sonhando com um apartamento com varanda, ou, vá lá, com uma janela interessante. Veria do alto, o pátio de uma escola com as crianças pulando corda na hora do recreio, jogando amarelinha, brincando de pique. Observaria o jardim de um palácio com as maritacas fazendo algazarra por conta do casamento do João de Barro com a Maria de barro. Contemplaria atenta a assembleia dos gatos rebeldes em cima dos telhados. Testemunharia um assalto em uma avenida movimentada e gritaria lá de cima attenzione pickpocket. Assistiria um dramático pôr do Sol e meditaria sobre como nosso planeta gira rápido e não sentimos nada. Lembraria de Galileu todo dia.

Observaria o jardim de um palácio com as maritacas fazendo algazarra por conta do casamento do João de Barro. Contemplaria a assembleia dos gatos em cima dos telhados. Testemunharia um assalto em uma avenida e gritaria lá de cima attenzione pickpocket

Lá de longe, miraria a chuva chegando como quem vem com uma grande novidade e o vento bagunçando as copas das palmeiras que passaram o dia se penteando. Presenciaria um resgate com um helicóptero de uma pessoa se afogando no mar e assim que o bombeiro a salvasse, eu enxergaria uma baleia dando um salto bem mais ali para o horizonte.

Contaria a frequência com que os aviões passam por aquela rota ali no ar. Tentaria estimar a velocidade da aeronaves fazendo uma regra de três. Sou boa em conta e me distraio calculando como quem faz palavras cruzadas. Vibraria ao ver o show da esquadrilha da fumaça da varanda.

Plantaria flores em vasos bonitos e esperaria a visita dos beija-flores e das lagartas. Eles viriam aos montes e elas me chateariam um pouco. Avistaria uma colisão entre dois carros com ninguém se ferindo. Olharia os motoristas discutindo e, depois, eles se esbofeteando. Chamaria Yuki para ver e contemplaríamos blocos de Carnaval, crianças saltitantes voltando da escola, a ciclovia movimentada, pessoas conversando em libras, um circo sendo erguido, peteca histérica sendo arremessada entre amigos, partidas de futebol feminino e frescobol praticado por cadeirantes.

Observaria a tormenta e a calmaria habitando a mesma tarde e as manhãs cheias de segredinhos. Veria uma senhora de mais ou menos setenta anos patinando todo dia pelas manhãs e uma mãe chegando da maternidade.

Diferenciaria o azul, o cinza, o branco e o vermelho quando olhasse e visse.

Muchacha en la Ventana, Salvador Dalí, 1925

Espiaria gente se exercitando e pessoas paradas como eu olhando o que tivesse para ser visto. Mas, meudeus, como teria coisas de lá de fora para entrar na minha cabeça. Teria todo dia elementos para uma crônica. Escrever é muito mais fácil para quem tem paisagens. O quanto perderia a literatura se todas as pessoas que escrevem vivessem em apartamentos sem varandas com vizinhos silenciosos e reservados como os meus?

Poderia ser que a minha vista fosse ofuscada pelos galhos de uma árvore bem alta. Poderia. Ainda assim, observaria as estações passando, ninhos sendo construídos, morcegos dormindo de cabeça para baixo, flores se abrindo e pegaria uma fruta madura esticando a mão. Veria uma fruta crescer e protegeria, com alguma gambiarra, minha manga dos passarinhos. Daria água para o moço amarrado por uma corda enquanto ele podasse os galhos mais fofoqueiros que estivessem invadindo a minha sala.

Para convencer Pipo de que meu desejo procede e que estou certa, resolvi registrar tudo o que estamos perdendo.

Elika Takimoto é professora de física, doutora em Filosofia, mestra em História, escritora e deputada estadual pelo PT-RJ


(3) comentários Escrever comentário

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Haroldo em 14/09/2023 - 18h49 comentou:

Sou apaixonado pela Elika, gostaria que ela fosse minha amiga, parente, irmã, esposa, amante ou quem sabe ela me adopta-se, mesmo tendo 70 anos, fechados em dezembro.

Responder

    Cynara Menezes em 18/09/2023 - 14h25 comentou:

    ela é demais mesmo!

Rafael em 22/09/2023 - 08h14 comentou:

Delicia de texto!

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