Socialista Morena
Trabalho

João Ferrador encontra Union Joe, “o presidente dos EUA mais pró-sindicato que já existiu”

Até em piquete Biden está indo; o que há de jogo de cena e verdade no movimento do presidente dos EUA em favor da sindicalização de trabalhadores?

Biden no piquete dos metalúrgicos e João Ferrador, personagem do sindicalismo brasileiro. Foto: reprodução X
Cynara Menezes
03 de outubro de 2023, 16h53

Em fevereiro deste ano, ao receber uma comitiva de sindicalistas norte-americanos na Blair House, a “casa de hóspedes” do presidente dos Estados Unidos, em Washington, Lula chamou seu velho amigo Stanley Gacek num canto e perguntou:

–Stan, este negócio do Biden com os sindicatos é pra valer?

Gacek, um sindicalista e advogado trabalhista gringo que conheceu Lula ao vir prestar solidariedade a ele durante sua prisão em 1980, deu ao presidente brasileiro a mesma resposta que deu a mim quando lhe fiz esta pergunta, em uma entrevista por vídeo na semana passada:

–Sim, o interesse de Biden pelo sindicalismo é genuíno. Como senador, ele sempre atuou em favor dos sindicatos.

Lula com os sindicalistas dos EUA na Blair House em fevereiro. Foto: Ricardo Stuckert

Seis meses depois, em agosto, Lula e Biden voltariam a se encontrar na reunião do G-7, em Hiroshima, no Japão, e foi o presidente dos EUA quem sugeriu: “O que você acha de nós lançarmos uma iniciativa pró-trabalhadores juntos?” Claro que Lula topou na hora. Ali nascia o acordo inédito que Biden e Lula assinaram em setembro se comprometendo a garantir que o investimento na transição energética crie empregos de qualidade; a proteger os direitos dos trabalhadores de plataformas digitais; e a aumentar a representatividade dos trabalhadores em fóruns internacionais, como G20 e conferências sobre o clima.

Joe Biden precisa dos sindicatos para ganhar a reeleição. Segundo uma pesquisa Gallup divulgada em agosto, o apoio dos norte-americanos ao sindicalismo continua alto: 67% dos norte-americanos aprovam os sindicatos. Como o governo Biden é aprovado por apenas 42% da população, ele deseja crescer justamente nesta faixa de pessoas simpáticas à sindicalização. A figura de Lula veio a calhar para fortalecer a imagem de presidente “amigo dos sindicalistas” que o norte-americano está construindo. Quem melhor do que Lula, o metalúrgico, para avalizar isso?

“É um momento histórico. Nunca nenhum presidente dos EUA topou discutir o tema trabalho”, festeja o ministro Luiz Marinho. De fato, quem poderia imaginar um presidente dizendo palavras de ordem ao megafone num piquete de metalúrgicos? E que não fosse Lula?

“Tenho orgulho de ser o presidente mais pró-sindicato da história dos EUA”, disse Biden em seu primeiro comício pela reeleição, na Pensilvânia, em junho. A frase vem sendo repetida pelo político democrata desde a abertura da corrida presidencial em Pittsburgh, em abril de 2019, quando declarou: “Sou um homem de sindicato. Ponto”, disse, desafiando o mercado financeiro. “O país não foi construído pelos banqueiros de Wall Street, foi construído por vocês.”

Biden inclusive apelidou a si próprio “Union Joe”, Joe Sindical. Na terça-feira, 26 de setembro, ele participou de um piquete dos metalúrgicos em Michigan. Foi a primeira vez que um presidente em exercício prestigiou um movimento grevista.

Em junho deste ano, nada menos que 17 dos maiores sindicatos dos EUA anunciaram apoio à reeleição de Biden em 2024, incluindo a AFL-CIO (sigla para Federação Norte-Americana do Trabalho e Congresso de Organizações Industriais, a maior central operária dos Estados Unidos), a Federação Norte-Americana dos Professores e a Federação dos Servidores Federais, Estaduais e Municipais. Também foi um feito inédito: é a primeira vez que isso acontece de forma coordenada durante uma campanha eleitoral.

Joe Biden precisa dos sindicatos para ganhar a reeleição. A figura de Lula veio a calhar para fortalecer a imagem de presidente “amigo dos sindicalistas” que o norte-americano está construindo. Quem melhor do que Lula, o metalúrgico, para avalizar isso?

“Este é um momento histórico. Nunca nenhum presidente dos EUA topou discutir o tema trabalho. Há uma mudança de padrão no país em relação aos sindicatos”, diz o ministro do Trabalho, Luiz Marinho. De fato, quem poderia imaginar um presidente, megafone em punho, apoiando uma greve e dizendo palavras de ordem num piquete de metalúrgicos? E que esse presidente não fosse Lula e sim o presidente dos EUA?

“Lucros corporativos recordes deveriam significar contratos recordes. Já é hora dos trabalhadores da indústria automobilística norte-americana conseguirem um acordo justo”, publicou Biden na rede social X, ex-twitter, sobre seu apoio à greve dos metalúrgicos. Os trabalhadores reivindicam reposição salarial de 36%, revisão das pensões e aposentadorias e que o sindicato seja autorizado a representá-los junto às 10 fábricas de baterias de motores elétricos que serão construídos em joint venture com fabricantes sul-coreanos.

Biden postou um vídeo onde, megafone em punho, repetiu as críticas ao mercado financeiro. “Vocês já me ouviram dizer isso muitas vezes: Wall Street não construiu este país, foi a classe média quem o fez, e os sindicatos construíram a classe média. Os trabalhadores do UAW (Sindicato dos Trabalhadores na Indústria Automotiva) merecem o que ganharam, e já ganharam muito mais do que recebem agora”, disse.

Em maio do ano passado, Biden recebeu na Casa Branca ninguém menos que Christian Smalls, o líder dos trabalhadores da Amazon, uma das estrelas do novo sindicalismo norte-americano. Na jaqueta de Smalls, a inscrição: “Eat the Rich” (“Coma os ricos”, em tradução livre). No mês anterior, o presidente havia apoiado publicamente o movimento dos trabalhadores da gigante do varejo por se sindicalizar. “Atenção, Amazon, aqui vamos nós”, desafiou.

Líder sindical da Amazon com Biden: Eat the Rich. Foto: divulgação Casa Branca

“Criei a Força-Tarefa da Casa Branca para empoderamento das organizações de trabalhadores para garantir que a escolha de aderir a um sindicato pertença apenas aos trabalhadores”, disse Biden, alfinetando diretamente o dono da companhia, Jeff Bezos, acusado de pressionar os empregados para que não se sindicalizem. No Alabama, em 2021, mesmo com as seguidas denúncias de precarização rondando a Amazon, os trabalhadores votaram por não criar um sindicato.

A votação foi contestada exatamente por “interferência ilegal da Amazon” no processo, e os trabalhadores obtiveram o direito de fazer uma segunda votação –também contestada. Segundo a apelação dos sindicalistas, a companhia “criou uma atmosfera de confusão, coerção e/ou medo de represálias e, assim, interferiu na liberdade de escolha dos trabalhadores” para aderir ou rejeitar o sindicato.

Biden se inspira em Roosevelt, tão pró-sindical que uma frase dele foi usada num pôster: “Se eu fosse trabalhar numa fábrica, a primeira coisa que faria seria me filiar a um sindicato”. Alguém consegue imaginar o golpista Temer, o pai da “reforma” trabalhista, falando algo assim?

Outros movimentos de empregados das grandes corporações pela sindicalização também obtiveram o encorajamento do presidente norte-americano, como ocorreu com a Apple em em junho do ano passado, quando Biden apoiou publicamente a criação de um sindicato pelos trabalhadores da empresa em Maryland. “Estou orgulhoso deles. Os trabalhadores têm o direito de determinar sob que condições irão trabalhar ou não trabalhar”, disse.

Nem o mais criativo roteirista de Hollywood (a greve deles, aliás, teve imenso apoio popular: cerca de 72%) poderia imaginar que um dia iríamos ver o presidente dos EUA se aproximar do movimento sindical brasileiro, testemunhar o momento em que “Union Joe” encontra “João Ferrador”, o célebre personagem das lutas sindicais do ABC nos anos 1980, desenhado por Laerte. Quando Lula estava preso, a cartunista promoveu uma visita de João Ferrador a Lula nas masmorras de Sergio Moro em Curitiba.

Mas Joe Biden está conseguindo cumprir a promessa de ser “o presidente mais pró-sindical da História”? Bem, João Ferrador diria que ainda não. É verdade que ele investiu em infraestrutura, fortaleceu os direitos dos trabalhadores, garantiu as aposentadorias e defende a sindicalização, mas para ser “o novo Roosevelt” falta um bom caminho. O 32º presidente dos EUA é louvado até hoje pelos sindicalistas por ter sancionado, em 1935, o Wagner Act, considerada a mais importante legislação trabalhista do país no século 20 e que garantiu o direito à organização sindical e à greve.

Roosevelt era tão ardentemente pró-sindical em seus discursos que uma frase dele chegou a ser usada num pôster para encorajar trabalhadores a se sindicalizarem: “Se eu fosse trabalhar numa fábrica, a primeira coisa que faria seria me filiar a um sindicato”. Alguém consegue imaginar o golpista Michel Temer, o pai da “reforma” trabalhista, falando algo assim? Nos anos que se seguiram ao New Deal, o Wacner Act foi, porém, sendo desidratado, e atualmente há vários empecilhos no caminho do trabalhador que deseja se sindicalizar.

Pôster pró-sindical com fala de Roosevelt

Biden poderia ter concretizado seu desejo de suplantar Roosevelt se o Congresso norte-americano tivesse permitido: assinado pelo presidente, o Protecting the Right to Organize Act (Ato em proteção do direito de se organizar) ou Pro-Act foi aprovado na Câmara e está parado no Senado. O Pro-Act dificulta que o empregador atue contra a formação de sindicatos no local de trabalho, fortalece o direito legal dos trabalhadores de se filiarem a um sindicato e permite ao Conselho Nacional de Relações Laborais que multe os patrões por violações das leis trabalhistas.

“Essa proposta é revolucionária, mas morreu na praia no Senado. Se fosse aprovada, teríamos como controlar a intromissão dos patrões na organização sindical”, diz Stanley Gacek, para quem este é o maior empecilho para a onda pró-sindical que chegou para ficar nos EUA. “A geração Z tem mais consciência social e tendência à sindicalização. Metade dos trabalhadores norte-americanos gostariam de se sindicalizar se pudessem, mas não podem porque existem represálias, práticas anti-sindicais empoderadas pela legislação dos EUA. Por isso a taxa de sindicalizados não passa dos 10%.”

A atual legislação cria empecilhos para os sindicalistas acessarem os trabalhadores diretamente e o empregador está autorizado a demitir os empregados mais engajados para frear movimentos pró-sindicalização. “Nos EUA, o patrão só não pode ameaçar ou oferecer benefícios para impedir a sindicalização. O resto pode”, lamenta Gacek. Mas ele está otimista com as mudanças no perfil do novo sindicalista norte-americano, com mais jovens, mais negros, mais mulheres, mais latinos, mais asiáticos. “Essa nova onda pode se fortalecer, há uma integração intergeracional muito boa. É um futuro promissor.”


Apoie o site

Se você não tem uma conta no PayPal, não há necessidade de se inscrever para assinar, você pode usar apenas qualquer cartão de crédito ou débito

Ou você pode ser um patrocinador com uma única contribuição:

Para quem prefere fazer depósito em conta:

Cynara Moreira Menezes
Caixa Econômica Federal
Agência: 3310
Conta: 000591852026-7
PIX: [email protected]
Nenhum comentário Escrever comentário

Os comentários aqui postados são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião da Socialista Morena. Todos as mensagens são moderadas. Não serão aceitos comentários com ofensas, com links externos ao site, e em letras maiúsculas. Em casos de ofensas pessoais, preconceituosas, ou que incitem o ódio e a violência, denuncie.

Deixe uma resposta

 


Mais publicações

Politik

Coreia do Sul dá claros sinais a Trump: vá fazer guerra em outra parte


Com o mundo em crise, os EUA querem lucrar promovendo alguma guerra. Mas a Coreia do Sul manda seu recado a Trump: aqui, não

Cultura

Histórias Cruzadas: as domésticas nos EUA


Quando o filme Histórias Cruzadas estreou nos Estados Unidos, em 2011, sofreu muitas críticas de entidades afro-americanas por mostrar a vida das empregadas domésticas do Mississipi sob uma ótica “branca”. Isso porque é uma “patroazinha”,…