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É possível traçar paralelos históricos entre o bolsonarismo e o nazismo?

Ouvir os alertas da História é razoável: ela não se repete, mas de vez em quando rima assustadoramente

Charge publicada por Schot no jornal holandês "De Volkskrant" em 2018
Lucas Porto
15 de junho de 2020, 18h31

O adjetivo fascista, ou nazista, sua versão mais extrema que vem da Alemanha e com frequência é usada como sinônimo, acompanha Bolsonaro não é de agora. Antes de ele se tornar presidente, suspeitas pairavam sobre sua vinculação histórica com esse espectro político: apologias à tortura, personalismo autoritário, inépcia no trato com divergências, forte tendência a criar inimigos fantasmagóricos, falta de apego às instituições, entre outras aberrações desagregadoras.

A colcha de retalhos eleitoral que se formou em seu entorno não foi capaz de conter suas inspirações antidemocráticas porque se esfrangalhou rapidamente. Assim, em vez de negar a política como vinha fazendo, tingindo-se como a novidade que não era, agora Bolsonaro a reproduz na versão mais pragmática e autoritária.

Hitler e o partido nazista nunca representaram mais do que 30% do eleitorado da Alemanha: foi a negligência e a cumplicidade das multidões que acreditaram que o ditador poderia ser parado, ou controlado, que se mostraram decisivas para o desastre que ele protagonizou

Não só por isso Bolsonaro tem sido chamado de fascista e é possível demonstrar que a comparação vai muito além da disputa política nas ruas e nas redes: seu flerte com o fascismo extrapola as simbologias repetidas pelos que o adoram, por ele próprio e por seus ministros –alguns exonerados por isso (como o ex-titular da Cultura, Roberto Alvim), outros não.

O recente anúncio de que o ministro da Justiça André Mendonça, que mais parece um Advogado-Geral da Família Bolsonaro, solicitou à Polícia Federal e ao Ministério Público abertura de inquérito contra o jornalista Ricardo Noblat e o cartunista Renato Aroeira por colocar sob o pincel do presidente uma suástica, é só um exemplo disso. A História oferece outros, convergindo para a charge.

A charge de Aroeira que incomodou Bolsonaro

Antes de chegar ao poder, Hitler cercou-se de uma milícia paramilitar que adiante foi incorporada ao Estado e tinha no armamentismo um cabo eleitoral para sua promessa de tornar a Alemanha grande de novo. Sua ascensão eleitoral está intimamente vinculada à crise econômica de 1929, que fez alemães apoiarem –ou apenas tolerarem– as ideias mais radicais que prometiam uma solução.

Em seu primeiro discurso como chanceler, transmitido por rádio para todo o país, ele repetiu a palavra “liberdade” diversas vezes, ainda que não nunca tenha sido um defensor histórico dela. Noutra ocasião Hitler aparece em um vídeo palestrando para o seu cercado, quando pedia moderação àqueles que esperavam mudanças que não vinham: “Vocês não devem agir por si, devem obedecer, se entregar, se submeter a este esmagador dever de obediência”. A obediência cega e à tolerância aos seus excessos crescentes foram a base do nazismo.

E engana-se quem pensa que o nacionalismo alemão personificado por Hitler era tão xenófobo assim: a Inglaterra e os ingleses eram amplamente admirados pelas classes dominantes alemãs, o que fazia da ilha muito mais que uma aliada fundamental para os planos bélicos de Hitler, algo que ele não conseguiu sustentar.

Antes de chegar ao poder, Hitler cercou-se de uma milícia paramilitar que adiante foi incorporada ao Estado e tinha no armamentismo um cabo eleitoral para sua promessa de tornar a Alemanha grande de novo

Em 1936, após o circunstancial sucesso de Joachim von Ribbentrop à frente do tratado que permitia que a Alemanha ampliasse sua frota naval, Hitler fez dele seu embaixador no Reino Unido. Os depoimentos de quem conviveu com Ribbentrop descrevem um homem descontrolado e estúpido, que gritava com todos e atirava objetos nas secretárias. Mas ele conhecia o chefe e sempre lhe apresentava as propostas mais radicais para conquistar sua simpatia –quem sabe, sugerindo mandar para cadeia eventuais vagabundos da Suprema Corte alemã.

As semelhanças entre a opinião que Hitler deixou sobre Rippentrop e Bolsonaro falando depois de Weintraub na famigerada reunião ministerial –quando  se disse mais educado que seu ministro da Educação porque se poliu muito– rompem as fronteiras do risível: “Com Ribbentrop é tão fácil. Ele sempre é radical. Enquanto todas as pessoas vêm aqui com problemas, medrosas –acham que devemos tomar cuidado, então eu tenho que me irritar com elas para que sejam fortes–, Ribbentrop estava sempre irritado e eu não tinha que fazer nada. Eu tinha que frear”.

Ribbentrop era malvisto e considerado um novo rico sem modos pelos próprios alemães –não é possível apurar sua habilidade para fritar hambúrgueres– e os ingleses não demoraram a concordar: na primeira chance que teve, Ribbentrop cumprimentou o rei George VI com a saudação nazista e seus passos seguintes foram desastrosos para a diplomacia dos dois países.

Incapaz de superar seu discurso monotemático e superficial, Hitler transferiu as responsabilidades da área econômica para Hjalmar Schacht, um homem de elite que desfrutava de amplo respeito entre os banqueiros alemães e que não se formou nas hostes do partido nazista, sendo considerado, por isso, um quadro técnico –o posto Ypiranga de Hitler. Schacht assumiu os destinos da economia em 1936 e, enquanto suas cartas casaram com as de Hitler, eles mantiveram um bom relacionamento, apostando fichas na indústria armamentista.

As responsabilidades da área econômica no nazismo eram de Hjalmar Schacht, homem de elite que gozava do respeito dos banqueiros alemães e que não se formou nas hostes do partido nazista, sendo considerado um quadro técnico –o posto Ypiranga de Hitler

O Führer não se interessava pelo que Schacht fazia, apenas queria resultados, como era típico de sua administração, e delegou poderes de execução a Schacht despreocupado com os meios. Adiante, Hitler assumiu que apenas lhe transmitia ordens: “Isto é o que eu exijo e o que eu devo ter”. Nem sempre, contudo, a missão dada podia ser cumprida. Segundo seus contemporâneos, Schacht era um homem muito seguro de si –o que podia fazer dele concorrente em eleições futuras– e quando ele tentou explicar tecnicamente a Hitler que a produção armamentista levaria a Alemanha ao colapso financeiro, foi afastado do cargo sem escusas. Mais tarde, um psicólogo norte-americano que examinou os nazistas detidos em Nuremberg descobriu que Schacht possuía o maior Q.I. dentre todos os demais, o que não foi um critério importante para garanti-lo no cargo.

Ele foi substituído por Hermann Göring, um dos responsáveis por incendiar o parlamento alemão anos antes, o que foi atribuído aos comunistas –o perigo comunista é universalmente inflacionado pelos que têm pouco apego à democracia. Além de radical, Göring era um homem luxurioso: empetecava a si e à esposa com jóias e diamantes tiradas dos judeus e mandou construir um castelo para suas horas de lazer. Sim, os nazistas não eram tão respeitadores dos recursos do Estado e a grandeza que eles prometiam para a Alemanha era também para seu próprio umbigo –no caso de Göring, separado das costas por uma circunferência cada vez mais dilatada pelas calorias garantidas pelo poder e pelo vício em morfina. Além de ser um reconhecido glutão, este homem tinha como passatempo assistir por horas e horas a seus muitos trens elétricos circularem pelo sótão do castelo que mandou construir no auge de sua autoridade.

Em 1938 as elites da Alemanha ainda apostavam que poderiam controlar os excessos nazistas e até lucrar com eles. Acreditava-se que Hitler cairia pela crise financeira que se anunciava e foi aí que ele apostou tudo na guerra, anunciando sua decisão de ocupar a Áustria e a Tchecoslováquia. Então, seu Ministro da Guerra e seu Comandante do Exército se opuseram à ideia ao invés de aplaudi-la: ambos foram afastados dos cargos e Hitler colocou seu homem mais radical para responder pelos postos, ele próprio. Lá, como aqui, as dissidências eram tratadas com a defenestração do pensamento contrário.

Os depoimentos de quem conviveu com Ribbentrop descrevem um homem descontrolado e estúpido, que gritava com todos e atirava objetos nas secretárias. Mas ele conhecia o chefe e sempre lhe apresentava as propostas mais radicais para conquistar sua simpatia. Lembra alguém?

As ferramentas de compreensão que a História oferece ao presente não funcionam com a exclusividade e a precisão dos cadeados e suas respectivas chaves. Decerto que as diferenças contextuais entre a Alemanha nazista e o Brasil de hoje são grandes, mas suas semelhanças são assustadoramente perigosas. Diferente do Brasil atual, quando Hitler ascendeu ao poder não era um vírus que oferecia risco à vida de milhões de pessoas em todos os continentes do planeta: a pandemia era a guerra que ele mesmo estava criando. Mas agora, como no passado, não só as mortes poderão ser contabilizadas em números recordes: a democracia parece igual e crescentemente ameaçada pelos arroubos personalistas de um chefe de Estado inimigo da inteligência –da que lhe falta e também das que a ele se opõem.

Na sua escalada ao poder, Hitler contou com o apoio de muita gente que sabia fazer barulho, mas ele e o partido nazista nunca representaram mais do que 30% do eleitorado da Alemanha: foi a negligência e a cumplicidade das multidões que acreditaram que o ditador seria parado, ou controlado, que se mostraram decisivas para o desastre que ele protagonizou.

Como sugere o historiador Sidney Chalhoub, ressignificando o senso comum que se apropriou de Marx: a História não se repete, mas de vez em quando ela rima. Por isso a luz de alerta já está acesa.

Assista o documentário The Nazis: A Warning From History , direção de Laurence Rees, BBC (Inglaterra), 1997.

*Lucas Porto Marchesini Torres, historiador, é autor de Estratégias de uma esquerda armada: militância, assaltos e finanças do PCBR na década de 1980 (EDUFBA, 2017)


(5) comentários Escrever comentário

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André Anlub em 15/06/2020 - 18h44 comentou:

Só sangue ruim no vídeo! Himmler era um dos piores! No mais, concordo com o texto.

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Paula em 17/06/2020 - 19h25 comentou:

Muito bom texto e o jeito que foi construído! Verei a recomendação do doc.

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Everson em 25/06/2020 - 23h02 comentou:

Belo texto. Muito bem elaborado e rico nas sugestões nos links e no doc.
Parabéns.

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Paulo Braga em 09/07/2020 - 20h51 comentou:

Esse sujeito, nunca pensou no Brasil e os brasileiros. Sempre com um sentimento Narciso e preconceitos perturbadores. Dirige, não um país, pois para isso, não tem competência. Estamos passando junto com o resto do mundo por um pandemia devido a um vírus avassalador. Este sujeito, em momento nenhum deu atenção ao que se passava. Foi IRÔNICO, CAFAJESTE, brincou com a morte e para provar que não é um “estadista, o Brasil está sem um Ministro da Saúde depois de duas trocas em plena Pandemia. Bem! Não quero nem me alongar ao falar de seus “DESASTRES” ministeriais. Eles brigam para saber quem é o pior. VERGONHA.

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Adailton Ramos. em 12/07/2020 - 17h15 comentou:

Um otimo e arrepiante texto, nunca é bom achar que um raio caia duas vezes, a pouca inteligencia faz do atual, ainda mais perigoso.

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