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Cultura

Assistam Aquarius: boicotar obras de arte em função de ideologia é atestado de burrice

É uma atitude covarde propor que as pessoas deixem de assistir a um filme apenas por não concordar com o que seu diretor pensa

Cynara Menezes
14 de setembro de 2016, 11h27

O cantor Chico Buarque é de esquerda.

O cantor Lobão defende a tortura.

O dramaturgo Nelson Rodrigues apoiou a ditadura militar.

O dramaturgo Plinio Marcos foi perseguido pela ditadura.

O poeta Ezra Pound era fascista.

O poeta e dramaturgo Bertolt Brecht era comunista.

O romancista Gabriel García Márquez era socialista.

O romancista Mario Vargas-Llosa é liberal.

O pintor Salvador Dalí era anticomunista.

O pintor Pablo Picasso era comunista.

O escritor Louis-Ferdinand Céline era antissemita.

O filósofo Walter Benjamin foi perseguido pelos nazistas.

O escritor Jorge Luis Borges apoiou a ditadura militar na Argentina.

O escritor Julio Cortázar foi contra a ditadura militar na Argentina.

O cineasta Kleber Mendonça Filho é de esquerda.

O cineasta José Padilha é antipetista.

A escritora Rachel de Queiroz apoiou o golpe de 1964.

O escritor Jorge Amado era comunista.

A pintora Frida Kahlo tinha a foice e martelo em sua armadura de gesso.

A cineasta Leni Riefenstahl era nazista.

O ator e diretor Clint Eastwood é reaça.

O roteirista Dalton Trumbo era comunista.

Um blogueiro da revista Veja que relativiza a ditadura militar resolveu propor em sua página o boicote da direita a Aquarius, do pernambucano Kleber Mendonça Filho, porque a equipe do filme se posicionou no festival de Cannes contra o golpe parlamentar que arrancou Dilma Rousseff da presidência. “Assim que o filme Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, estrear no Brasil, as pessoas com vergonha na cara e amor à verdade têm uma obrigação: boicotá-lo”, escreveu o articulista do panfleto reacionário dos Civita. “O dever das pessoas de bem é boicotá-lo. Que os esquerdistas garantam a bilheteria.”

Para desespero do blogueiro reaça, a frase acabou sendo usada no cartaz do filme para promovê-lo, gerando nova onda de fúria. “O petralha de Aquarius resolveu usar meu nome para faturar uns trocados. Ou: não tomo o feijão do povo para financiar metáforas vagabundas”, rosnou o “colunista”, que já foi chamado pela ombudsman do próprio jornal onde também escreve, a Folha de S.Paulo, de rottweiler.

O que essa gente propõe? Que quem é de direita nunca mais ouça Chico Buarque? Que quem é de esquerda nunca mais leia Jorge Luis Borges? Que tenhamos de escolher entre Picasso e Dalí, entre García Márquez e Vargas Llosa, a depender de como pensamos politicamente? Boicotar obras de arte em função da posição ideológica dos autores é o maior atestado de burrice que um ser supostamente pensante pode dar. Sobretudo porque é impossível criticar sem assistir, ler ou ouvir a obra em questão. Como criticar Aquarius se você não viu?

Aquarius é um filme “de esquerda”? Não. É um filme, sem dúvida, contra a especulação imobiliária. Mas precisa ser de esquerda para se o opor à destruição das cidades onde vivemos para que meia dúzia de privilegiados nade em dinheiro? Acho que não. Além disso, Aquarius traz a musa do cinema brasileiro Sonia Braga em um dos grandes papéis de sua vida, terno, ao mesmo tempo suave e forte; é ainda uma história sobre maturidade e as escolhas que fazemos na vida. Um filme existencialista, isso sim. Pessoas de esquerda e direita deviam vê-lo. Ou não. Mas tirem a ideologia desta escolha.

O mais idiota desta história toda é que estes mesmos reaças que propõem boicotar uma obra de arte porque o diretor não comunga de suas opiniões politicamente costumam ridicularizar as pessoas que resolvem deixar de dar seu dinheiro a empresas que exploram os empregados, que produzem comida lixo ou que degradam o meio ambiente. Ou seja, boicotar filmes, livros e músicas é bacana. Boicotar empresas vagabundas, não. Dá para entender?

A proposta de boicote a Aquarius tem o mesmo DNA da estúpida ideia da Escola Sem Partido, que quer impedir os estudantes brasileiros de terem acesso ao conhecimento sobre o socialismo e até sobre Karl Marx. No fundo, o que essa direita pseudointelectual pretende é emburrecer os jovens e a sociedade como um todo. Querem que a capacidade de refletir e de se indignar dos cidadãos se perca. Subtrair conhecimento em vez de acrescentar não forma indivíduos pensantes, pelo contrário. Ainda mais quando se trata de arte.

É perfeitamente possível separar a arte da ideologia. Nos faz mais inteligentes enfrentar preconceitos para tentar entender o ponto de vista do outro, e então criticá-lo ou saudá-lo. Fugir do confronto é um sinal inequívoco de inferioridade intelectual. Por que o blogueiro de Veja teme Kleber Mendonça? Por que ele teme Aquarius? Me parece um atitude covarde propor que as pessoas deixem de assistir a um filme apenas por não concordar com o que seu diretor pensa. Covarde e burra.

 

 


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